domingo, 17 de novembro de 2013

9- Ensaio: Ética versus Direito - por José Luiz Quadros de Magalhães



Ética versus Direito
por José Luiz Quadros de Magalhães



            O direito está ocupando o espaço da ética. Grande perigo. Esta é mais uma pontuação necessária para abordagem do tema "ética, cotidiano e corrupção". Vivemos em nosso país um fenômeno que se reproduz também em outros estados: a expansão do direito e a construção ideológica da crença no direito (especialmente o direito penal) para a solução de problemas recorrentes (já discutidos) de corrupção e violências. A leis se reproduzem como coelhos. Lei para punir penalmente as pessoas que dirigem após beberem bebidas alcoólicas; lei para proibir a palmada; lei da ficha limpa para proibir candidatos "sujos" de se candidatarem; lei para proibir o tabaco; leis, leis e mais leis. O problema não é apenas o fato de que estas leis não funcionarão, é obvio, pelo que já discutimos anteriormente. O problema, também, não é o fato de que estas leis desviam a atenção dos reais problemas e fatos geradores da violência, exclusão e corrupção. Talvez, o maior problema seja a substituição da ética pelo direito. Vejamos.
            A busca por uma sociedade ética não é um desafio novo. Na modernidade, a grande pretensão de construção de um sociedade ética, que prescindisse do direito (direito penal incluído, óbvio), foi defendida por (alguns) anarquistas e por comunistas. A pretensão da construção de uma sociedade sem estado, sem direito, sem polícia, exército, governos, parlamentos, propriedade privada e qualquer outra forma de poder, de opressão e exclusão foi e é defendida pelas lutas de comunistas e anarquistas, que por caminhos distintos, acreditavam (e alguns ainda acreditam, ainda bem) na possibilidade de construção de uma sociedade de mulheres e homens livres de qualquer forma de opressão. Esta liberdade seria conquistada após a construção pelo estado socialista (na perspectiva comunista), de um ser humano eticamente, moralmente e intelectualmente evoluído. Sem pretender discutir neste momento a "hipótese comunista"[4] ressaltamos a aposta na ética. Para viabilizar a hipótese comunista seria necessário construir seres humanos éticos. Nesta sociedade, as pessoas respeitariam o outro, seriam solidários, honestos, íntegros, não roubariam ou agrediriam, não por medo do Estado e do direito penal, não por medo da polícia e do sistema penitenciário (pois nada disto existiria mais), mas pelo fato de estarem convencidos de que respeitar o "outro", ser solidário e honesto, seria a única conduta correta e logo, possível, de ser adotada.
             Não é o objeto deste texto, como disse anteriormente, debater a hipótese comunista: será esta sociedade de pessoas éticas e conscientes possível? O que ressalto aqui é o fato da aposta na possibilidade e na busca de uma sociedade ética, que não mais necessite do direito.
            Hoje ocorre o contrário! Hoje ocorre o oposto! Nossas sociedades contemporâneas apostam no direito como a solução de tudo, o que significa a falência da ética e da moral.
            Expliquemos.
            O direito, ainda necessário, e todo o seu aparato ideológico, punitivo e repressor pode ser necessário nas sociedades que conhecemos. Se no estado moderno, o direito serviu (e ainda serve em boa medida) para proteger a propriedade e os privilégios (direitos para alguns) de uma minoria de homens, brancos e proprietários (substituídos por proprietários diversos hoje), o direito, mais recentemente, também passou a cumprir um outro papel: proteger e garantir direitos para aqueles que foram sistematicamente excluídos do sistema social e econômico e estruturar formas e sistemas de participação política democrática, o que resultou no reconhecimento do direito à diferença, e mais recentemente, o direito à diversidade. Bem, o direito pode ser necessário, ainda, durante um tempo razoável (entendam o tempo razoável como quiserem).
            Portanto, os direitos fundamentais, especialmente o direito a diversidade, é uma importante conquista na luta pela superação de uma modernidade padronizadora e excludente.
            O problema reside no fato do uso indiscriminado do direito penal como encobrimento e distração. E não só isto, o maior problema está na ampliação do direito penal: tudo passa a ser criminalizado. Todas as condutas não aceitas (não aceitas por quem?) são agora objeto de punição, de criminalização. Presenciamos uma invasão radical do direito sobre o espaço que deveria permanecer com a ética (qual deve ser o espaço da ética). O resultado disto é a troca de condutas decorrentes do convencimento por condutas decorrentes do medo. Explico. Nos espaços éticos, as pessoas são levadas a agir de determinada maneira por estarem convencidas de que esta conduta é a conduta moralmente sustentável e eticamente correta. No campo do direito, as pessoas são levada a agir, não apenas (e talvez principalmente) por estarem convencidas, mas pela existência de uma sanção estatal, penal, que ameaça a paz, a liberdade e a integridade do infrator.
            Assim, quanto mais direito penal, mais se exige do estado a capacidade de vigiar e punir[5]. Uma pergunta salta diante de nossa percepção: e se o estado não conseguir vigiar e punir o suficiente para intimidar as pessoas a agirem como o estado (quem tem poder) deseja que estas pessoas ajam.
            Vejam então o resultante desta equação: o estado, por meio do direito chamou tudo para si. "Posso resolver tudo por meio do direito penal, do controle, da polícia e do sistema penitenciário" dizem os donos do poder. Diz ainda o "estado": "posso acabar com a corrupção punindo e controlando os corruptos". Entretanto, alguém, timidamente, no fundo da sala levanta a mão e faz a seguinte pergunta: se o estado absorveu toda a ética, se tudo passou a depender de um estado que tudo controla, tudo vê e a todos pune, se algum dia este estado não conseguir mais controlar, ver e punir, o que restará, se toda a ética foi reduzida ao direito penal?
            Não restará nada. E o problema é que o estado, há muito, não dá conta de fiscalizar e aplicar suas leis, pois o próprio estado (por meio de seus agentes) as descumprem (sempre é bom lembrar a pergunta: o que é o estado e quem é o estado?). Se as pessoas não mais agem por convencimento racional (ético) mas sim por coação, quando a coação nos anular ou não mais funcionar, não sobrará muita coisa além do caos.
            Não, o direito penal não solucionará a corrupção, e o triste espetáculo que assistimos no STF, em 2012, ainda comprometerá o que o direito nos ofereceu de muito bom: respeito aos direitos fundamentais conquistados por meio de muita luta.

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