O Estado plurinacional na América Latina como uma construção do poder popular.
A transição para a democracia popular na América Latina
José Luiz Quadros de Magalhães[1]
INTRODUÇÃO: ORIGENS
A teoria do poder constituinte
atualizada pela análise da relação entre democracia e constituição é uma
contribuição importante para pensarmos a permanente conexão e tensão entre
Constituição, como pretensão de segurança, permanência e garantia de direitos,
e Democracia como transformação social e conquista de novos direitos
históricos. O poder constituinte originário, como um elo extremo entre
democracia e segurança, é o reconhecimento da possibilidade/necessidade de
revolução. O Direito democrático não pode ficar distante, ou ignorar a
possibilidade de revolução como processo radical e democrático de transformação
social. O Direito deve estar próximo, permanentemente, à democracia. A
Constituição significa a segurança de que a democracia, enquanto processo
criador de transformação, não se perderá em lutas incessantes de poder, e logo
no risco do autoritarismo ou totalitarismo. Neste sentido o poder constituinte
originário deve ser este elo entre democracia e constituição no momento mais
radical de transformação social: a ruptura revolucionária com a constituição
antiga para a construção de um novo sistema democrático e também constitucional.
Neste ensaio buscaremos explicar
esta ligação entre democracia e constituição na história moderna; revisitaremos
a teoria do poder constituinte; para então vislumbrarmos os novos caminhos do
estado plurinacional na América Latina, especialmente nas novas constituições
democráticas e plurais da Bolívia e Equador. Os processos de transformação
democrática, fundados em uma nova experiência constitucional, podem apontar
para uma nova teoria da constituição que reconheça uma nova função para a
constituição, agora não mais no seu papel de reação às mudanças não permitidas,
mas sim, de instrumento, que coloca as instituições e leis, a favor das
transformações democráticas populares ou, em outras palavras, nas
transformações efetivamente democráticas..
1- DEMOCRACIA E CONSTITUIÇÃO
O Constitucionalismo não nasceu
democrático. Nascido na forma liberal, o constitucionalismo visava à construção
de um espaço de segurança jurídica e de proteção da esfera de decisão
individual. Segurança, propriedade privada e privacidade são as palavras que
identificam o constitucionalismo liberal. Assim como o constitucionalismo não
nasceu democrático, os direitos fundamentais declarados nas constituições
liberais eram para poucos. Os direitos políticos eram assegurados apenas para
homens, proprietários e ricos.
Dentro do conceito da época, a
constituição seria incompatível com a democracia majoritária uma vez que a
constituição visava proteger o direito e a vontade de cada indivíduo, enquanto
a democracia representaria a vontade do coletivo majoritário sobre o
minoritário e logo sobre a vontade individual.
A fusão entre democracia e
constituição ocorreu apenas na segunda metade do século XIX, quando então, por
força dos movimentos operários e dos partidos de esquerda conquistou-se
primeiramente o voto igualitário masculino, para depois de algum tempo,
gradualmente, conquistar-se o sufrágio universal com o voto igualitário e o fim
da discriminação, jurídica, de gênero. Esta relação entre democracia e constituição
trouxe a noção de “democracia com segurança” que se transformou com o tempo, na
idéia de que, a vontade da maioria tem limites de decisão estabelecidos na
obrigatoriedade de respeitar os direitos das minorias e no núcleo duro de
qualquer constituição: os direitos fundamentais.
Entretanto a tensão entre
constituição e democracia não acabou, e nem poderia: constituição ainda
significa segurança e pretensão de permanência, enquanto democracia significa
mudança e, portanto, risco.
Democracia é risco uma vez que é
expressão da vontade das pessoas em sociedade. Nós somos seres históricos, em
permanente processo de transformação. Transformamos nossas sociedades
permanentemente, como fruto de nossa busca incessante. Só uma ditadura (mesmo
que travestida de outros sistemas muitas vezes até mesmo chamados de democracias)
pode ter pretensão de permanência conservadora.
Logo é fácil concluir que, mesmo
democráticas, as constituições como limitadoras e conformadoras, mesmo sofrendo
mutações interpretativas e mudanças formais de seu texto, serão sempre, em
algum momento, superadas pela dinâmica social histórica. Daí a existência do
poder constituinte originário como poder de ruptura democrática. Este é o
momento onde a democracia rompe com uma ordem que não mais responde
socialmente, para então, democraticamente, estabelecer outro sistema
constitucional. Este é sempre um momento de risco, pois é o momento onde a democracia
se desprende da constituição, se desprende dos limites jurídicos, para logo
estabelecer novos limites, em um novo processo constituinte originário, diante
do risco de que, a falta de limites, transforme esta vontade criadora livre em
uma ditadura da maioria.
2- O PODER CONSTITUINTE
A diferenciação entre Poder
Constituinte e Poder Legislativo ordinário ganhou ênfase e concretização na
Revolução Francesa, quando os Estados Gerais, por solicitação do Terceiro
Estado, se proclamaram como Assembléia Nacional Constituinte, sem nenhuma
convocação formal.
Na França revolucionária (1789)
foram superadas as velhas teorias que determinavam a origem divina do poder,
afirmando a partir de então que a nação, o povo (seja diretamente ou através de
uma assembléia representativa), era o titular da soberania, e, por isso, titular
do Poder Constituinte. Entendia-se então que a Constituição deveria ser a
expressão da vontade do povo nacional, a expressão da soberania popular. Idéias
que podem parecer um pouco românticas ou artificiais em uma construção teórica
transdisciplinar contemporânea. Podemos dizer que as dificuldades (ou
impossibilidade) contemporâneas para afirmar a existência de uma (única)
vontade popular, em sociedades de extrema complexidade, é bem maior hoje que no
passado, entretanto, sempre estiveram presentes no Estado moderno. Por mais
democrático que tenha sido qualquer poder constituinte vamos encontrar no
complexo jogo de poder por traz da da assembleia constituinte, aqueles que têm
a capacidade ou possibilidade de impor seus interesses com mais força do que
outros.
Podemos dizer que a elaboração
geral da teoria do Poder Constituinte nasceu, na cultura europeia, com SIÉYÈS,
pensador francês do século XVIII. A concepção de soberania nacional na época,
assim como a distinção entre poder constituinte e poderes constituídos como
poderes derivados do primeiro, são contribuições desta teoria..
SIÉYÈS afirmava que objetivo ou
o fim da Assembléia representativa de uma nação (a idéia de nação aí aparece
como algo maior que o povo, diferente da idéia de povo como aqueles que se
sentem parte do Estado nacional desenvolvida em outro momento) não pode ser
outro do que aquele que ocorreria se a própria população pudesse se reunir e
deliberar no mesmo lugar. Ele acreditava que não poderia haver tanta insensatez
a ponto de alguém, ou um grupo, na Assembléia geral, afirmar que os que ali
estão reunidos devem tratar dos assuntos particulares de uma pessoa ou de um
determinado grupo.[2]
3- A AMPLITUDE DO PODER
CONSTITUINTE
Vamos encontrar em diversas
obras clássicas do constitucionalismo nacional e estrangeiro como, por exemplo,
em PINTO FERREIRA,
a afirmativa de que o Poder Constituinte é o poder de criar, emendar e revisar
a Constituição.[3]
Entre muitos clássicos podemos destacar WALTER DODD, KELSEN, HAURIOU entre
muitos, os que concordam com a afirmativa anterior. Entre os que discordam,
afirmando que o Poder constituinte será apenas aquele que cria a Constituição
encontramos entre outros SCHMITT, HELLER, RECASÉNS SICHES e CARL FRIEDRICH.
A importância desta discussão
teórica, aparentemente de menor valor, reside no fato das fundamentações
teóricas da força do poder de reforma (através de emenda e revisão). Alguns
autores tendem admitir força igual ao poder originário, em algumas
circunstâncias, fazendo com que os limites materiais, circunstanciais, formais
e temporais, praticamente desapareçam.
O problema central desta
discussão é a segurança que a Constituição deve oferecer às relações jurídicas.
Se admitirmos a compreensão de que o poder de reforma pode tudo, chegaríamos a
uma situação de insegurança grande, pois maiorias qualificadas no parlamento
poderiam quase tudo. É obvio que o simples fato de chamarmos o poder de reforma
de poder constituinte derivado, não é o bastante para lhe oferecer tal força,
mas é importante que isto fique claro.
Podemos acrescentar ainda, que a
tese de que não será mais necessário um poder constituinte originário, que a
época das revoluções acabou, que chegamos aos sistema possível, natural ou
outras bobagens como a tese do fim da história, ajudam a sustentar uma maior
amplitude do poder constituinte derivado (o poder de reforma) sempre nas mãos
dos representantes. Por sua vez estes representantes são escolhidos pelo voto,
em sistemas partidários onde as opções de escolha efetiva (por alguma coisa
diferente) é cada vez mais reduzido (ou inexistente em muitos casos) e o
resultado das eleições cada vez mais condicionado por aparelhos ideológicos
poderosos e sofisticados liderados por uma mídia privada extremamente
concentrada e descaradamente mentirosa e manipuladora.
Importante notar que muitos dos
autores clássicos acima citados, ao negar a amplitude maior do poder
constituinte, incluindo o poder de reforma como poder constituinte derivado,
não tinham sempre a intenção de preservar a Constituição, preservando com isto
a segurança jurídica e os direitos fundamentais diante de maiorias autoritárias
ou sem limites. Esta é a questão central que nos interessa.
Lembrando as palavras de IVO
DANTAS:
“O Poder
Constituinte interessa à sociologia, especificamente a sociologia do Direito e
a Sociologia Política, em virtude de ser um Poder de Fato, e não um Poder de
Direito, espécie em que se enquadram os poderes constituídos, inclusive o
chamado Poder de Reforma, erroneamente denominado Poder constituinte derivado.”[4]
Seguindo esta linha de
raciocínio, e buscando na sociologia elementos essenciais para a compreensão do
fenômeno constituinte, podemos afirmar que embora o poder constituinte
originário não tenha limites no ordenamento jurídico positivo com o qual ele
está rompendo, este poder sofre, de maneira clara e inegável, limitações de
caráter social, cultural e forte influência do jogo de forças econômicas,
sociais e políticas no momento da elaboração da Constituição.
Talvez seja necessária neste
ponto uma diferenciação importante: o que são os limites legítimos de ação da
assembléia constituinte decorrentes das influências dos diversos grupos de
interesse presentes numa sociedade complexa e que são elementos legitimadores e
democráticos do processo constituinte, desde que manifestos de forma livre e
dialógica na relação entre sociedade e representantes constituintes, e os
limites ilegítimos, não democráticos, decorrentes de influências do poder
econômico no processo eleitoral de escolha dos representantes por meio do abuso
do poder econômico e de pressão econômica ou outras formas não democráticas,
puramente corporativas, sobre o processo de votação na assembléia constituinte.
Convém lembrar que estas formas ilegítimas sempre estiveram presentes nos
Estados de economia capitalista com maior ou menor influência, pois são
decorrentes da própria lógica do jogo capitalista, inerente a este sistema
econômico. O que resta fazer é desenvolver mecanismos que permitam diminuir as
influências que SIÉYÈS já mencionava como ilegítimas (e improváveis) pois
decorrentes de pequenos grupos egoístas que querem impor seus interesses
perante a maioria e perante todos os outros grupos de interesse de maneira não
equilibrada e ilegítima (não vamos também acreditar nesta inocência de Siéyès
que não era nenhum democrata).
Alguns autores entendem que o
poder constituinte originário é o momento de passagem do poder ao Direito. É
inegável que o poder constituinte originário é o momento maior de ruptura da
ordem constitucional, onde o poder de fato que se instala, forte o suficiente
para romper com a ordem estabelecida, é capaz de construir uma nova ordem sem
nenhum tipo de limite jurídico positivo na ordem com a qual está rompendo. Se
entendermos o Direito como sendo sinônimo de lei positiva, posto pelo Estado, o
poder constituinte originário será apenas um poder de fato. E é justamente
neste ponto que reside sua força. É claro que não reduzimos o Direito nesta
perspectiva legalista já ultrapassada, que reduz o Direito à regra,
transformando a construção do Direito em uma simples aplicação da receita
pronta da lei ao caso concreto.
Importante entender a força do
poder constituinte originário como poder de fato, capaz de romper com a ordem
vigente, sendo, portanto, um poder ilegal e inconstitucional em relação a ordem
com a qual este poder rompe, e pela qual não se limita. Desta forma, o que
legitima o poder constituinte originário é o fato de expressar uma inequívoca
vontade popular radicalmente democrática, revolucionariamente democrática.
Esta afirmativa contém a
essência da segurança que busca o constitucionalismo moderno: a Constituição na
sua essência deve ser tão forte e perene que nenhum poder constituído pode
romper com seus fundamentos e estrutura. Somente um poder social mais forte,
porque representando a força democrática da vontade histórica do povo, pode
romper com a Constituição para então criar uma nova Constituição. O poder
originário nasce da revolução e nem mesmo a Constituição poderá segurá-lo uma
vez que é o poder de transformação social da própria história.
Neste recurso do Direito
Constitucional ao poder social, ao poder de fato, transformador e histórico,
reside sua própria segurança, contra maiorias temporárias parlamentares que
queiram transformar toda a Constituição, escrevendo uma nova, procurando se
legitimar no voto que elegeu os representantes. A proteção contra o
autoritarismo da maioria reside na exigência de poder social irresistível,
única justificativa para a ruptura constitucional. Defensores de tese contrária
procuram desenvolver mecanismos meramente representativos evitando muitas vezes
os mecanismos consultivos como os plebiscitos e referendos (quando estes não
estão sob o seu controle) para justificar uma alteração radical do texto
constitucional, que afete seus princípios fundamentais, criando na verdade uma
nova Constituição. Estes mecanismos podem ser verdadeiros golpes contra a
segurança jurídica, que como disse, só pode ser rompida pela força social
irresistível que não se expressa em meras representações, pois quinhentos não
podem o que só milhões poderão.
Pode-se afirmar, entretanto, que
estes milhões podem ser ouvidos em plebiscitos, mas como proteger estes milhões
da força de manipulação da propaganda na construção de uma falsa vontade
popular. Por isto nada pode substituir a mobilização popular fundada em uma
democracia dialógica permanente, única justificativa para rupturas
constitucionais profundas.
Apenas os processos democráticos
dialógicos com ampla mobilização popular podem justificar uma ruptura, que sendo
fato irresistível se afirma com força, mas não de forma ilimitada. O Direito
não se encontra apenas no texto positivado, ou na decisão judicial, mas latente
na idéia de justiça dialogicamente compartilhada em processos democráticos de
transformação social, e será esta compreensão dialogicamente construída em uma
sociedade, em um determinado momento histórico, capaz de legitimar o Direito e
suas transformações, incluindo as rupturas constitucionais.
O Poder constituinte originário
só será legitimo se sustentado por amplo processo democrático dialógico que
ultrapasse os estreitos limites da representação parlamentar. O poder
constituinte originário tem sustentar-se nos diversos processos participativos
expressos pelos movimentos sociais populares para além das instituições formais
representativas (legislativo e executivo) ou não (judiciário).
Portanto, podemos concluir que
este poder de fato será também de Direito, se efetivamente democrático,
entendendo-se democrático, como um processo dialógico amplo que envolva o
debate dos mais variados interesses e valores da sociedade em um determinado
estado.
Não há dúvida que a vontade do
poder constituinte deve emanar de mecanismos democráticos, que permitam que o
processo de elaboração da constituição assim como de sua reforma, seja aberto a
ampla participação popular, não apenas por meio de diálogo com os
representantes eleitos, mas através de legitima mobilização e pressão dos
movimentos sociais.
Este poder será democrático na
medida em que o processo constituinte sirva como arena privilegiada de
demonstração dos grandes temas nacionais, para que, a partir daí, seja possível
que as manifestações do jogo de forças sociais seja legitimamente exercido. É
fundamental para isto que o poder de manipulação do marketing político, da
propaganda, o poder de pressão econômica seja contido ou melhor, eliminado. Não
pode uma minoria nos bastidores se sobrepor a vontade presente nas ruas e no
campo.
Este poder constituinte
originário democrático se manifestou na América do Sul em 2008 e 2009 na
Bolívia e no Equador.
4- O NOVO CONSTITUCIONALISMO SUL
AMERICANO E O ESTADO PLURINACIONAL.
A América Latina vem passando
por um processo de transformação social democrática importante e surpreendente.
Da Argentina ao México os movimentos sociais vêm se mobilizando e conquistando
importantes vitórias políticas (não só eleitorais). Direitos historicamente
negados às populações indígenas agora são reconhecidos. Em meio a estes
variados processos de transformação social, percebemos que cada país, diante de
suas peculiaridades históricas, vem trilhando caminhos diferentes, e a maioria
vêm somando ao caminho institucional da democracia representativa uma forte
democracia dialógica participativa popular.
Algo novo, com força de ruptura
com a teoria constituinte moderna (europeia) ocorreu de forma mais radical na
Bolívia e no Equador, onde governos eleitos a partir de movimentos populares,
promulgaram suas novas Constituições, e com estas trouxeram um conceito
totalmente inovador para o mundo jurídico: o Estado plurinacional.
Vamos apenas introduzir este
conceito como fruto de um processo democrático que se iniciou com revoluções
pacíficas, onde os povos indígenas, finalmente, após 500 anos de exclusão
radical, reconquistam gradualmente sua liberdade e dignidade.
4.1-
O Estado Nacional
Para entender o estado
plurinacional e seu potencial revolucionário é necessário entender antes o
paradigma que vivemos há quinhentos anos e que sustentou a afirmação e expansão
do capitalismo: o estado nacional.
A formação do Estado moderno a
partir do século XV ocorre após lutas internas onde o poder do Rei se afirma
perante os poderes dos senhores feudais, unificando o poder interno, unificando
os exércitos e a economia, para então afirmar este mesmo poder perante os
poderes externos, os impérios e a Igreja. Trata-se de um poder unificador numa
esfera intermediária, pois cria um poder organizado e hierarquizado
internamente, sobre os conflitos regionais e as identidades existentes
anteriormente a formação do Reino e do Estado nacional, que surge neste momento,
e de outro lado, se afirma perante o poder da Igreja e dos Impérios. Este é o
processo que ocorre inicialmente em Portugal, Espanha, França e Inglaterra.[5]
Destes fatos históricos decorre
o surgimento do conceito de uma soberania em duplo sentido: a soberania interna
a partir da unificação do Reino sobre os grupos de poder representados pelos
nobres (senhores feudais), com a adoção de um único exército subordinado a uma
única vontade; a soberania externa a partir da não submissão automática à
vontade do papa e ao poder imperial (multi-étnico e descentralizado).
Um problema importante surge
neste momento, fundamental para o reconhecimento do poder do Estado, pelos
súditos inicialmente, mas que permanece para os cidadãos no futuro estado
constitucional: para que o poder do Rei (ou do Estado) seja reconhecido, este
Rei não pode se identificar particularmente com nenhum grupo étnico interno. Os
diversos grupos de identificação pré-existentes ao Estado nacional não podem
criar conflitos ou barreiras intransponíveis de comunicação, pois ameaçarão a
continuidade do reconhecimento do poder e do território deste novo Estado
soberano. Assim a construção de uma identidade nacional se torna fundamental
para o exercício do poder soberano.
Desta forma, se o Rei pertence a
uma região do Estado, que tem uma cultura própria com a qual, claramente, ele
se identifica, dificilmente um outro grupo, com outras características, com
outra identidade, reconhecerá o seu poder. Assim a tarefa principal deste novo
Estado é criar uma nacionalidade (conjunto de valores de identidade) por sobre
as identidades (ou podemos falar mesmo em nacionalidades) pré-existentes.[6] A
unidade da Espanha ainda hoje está, entre outras razões, na capacidade do poder
do Estado em manter uma nacionalidade espanhola por sobre as nacionalidades
pré-existentes (galegos, bascos, catalães, andaluzes, castelhanos, valencianos
entre outros). O dia que estas identidades regionais prevalecerem sobre a
identidade espanhola, os Estado espanhol estará condenado à dissolução. Como
exemplo, podemos citar a fragmentação da Iugoslávia entre vários pequenos
estados independentes (estados étnicos) como a Macedônia, Sérvia, Croácia,
Montenegro, Bósnia, Eslovênia e em 2008 o impasse com Kosovo.
Portanto a tarefa de construção
do Estado nacional (do Estado moderno) dependia da construção de uma identidade
nacional, ou em outras palavras, da imposição de valores comuns que deveriam
ser compartilhados pelos diversos grupos étnicos, pelos diversos grupos sociais
para que assim todos reconhecessem o poder do Estado, do soberano. Assim, na
Espanha, o rei castelhano agora era espanhol, e todos os grupos internos também
deveriam se sentir espanhóis, reconhecendo assim a autoridade do soberano.
Este processo de criação de uma
nacionalidade dependia da imposição e aceitação pela população, de valores
comuns. Quais foram inicialmente estes valores? Um inimigo comum (na Espanha do
século XV os mouros, o império estrangeiro), uma luta comum, um projeto comum,
e naquele momento, o fator fundamental unificador: uma religião comum. Assim a
Espanha nasce com a expulsão dos muçulmanos e posteriormente judeus. É criada
na época uma polícia da nacionalidade: a santa inquisição. Ser espanhol era ser
católico e quem não se comportasse como um bom católico era excluído.
A formação do Estado moderno
está, portanto, intimamente relacionada com a intolerância religiosa, cultural,
a negação da diversidade fora de determinados padrões e limites. O Estado
moderno nasce da intolerância com o diferente, e dependia de políticas de
intolerância para sua afirmação. Até hoje assistimos o fundamental papel da
religião nos conflitos internacionais, a intolerância com o diferente. Mesmo
estados que constitucionalmente aceitam a condição de estados laicos têm na
religião, uma base forte de seu poder: o caso mais assustador é o dos Estados
Unidos, divididos entre evangélicos fundamentalistas de um lado e protestantes
liberais de outro lado. Isto repercute diretamente na política do Estado, nas
relações internacionais e nas eleições internas. A mesma vinculação religiosa
com a política dos Estados podemos perceber em uma União Européia
cristã que resiste a aceitação da Turquia e convive com o crescimento da
população muçulmana européia.
O Estado nacional marca a
modernidade, estado este que mais tarde, no século XVIII, se transformará em um
Estado constitucional.
Fundamental a compreensão de
que, sem o estado moderno o capitalismo, com a sua classe burguesa, não
prosperaria. Não haveria capitalismo sem a uniformização das subjetividades no
espaço territorial, inicialmente do estado, assim como são fundamentais para a
afirmação desta economia a existência de um exercito nacional (que invadirá
territórios, subjugando povos para extrair suas riquezas). Outras invenções
modernas são também essenciais para o desenvolvimento da economia capitalista:
as moedas nacionais; os bancos nacionais; a polícia nacional (para controlar,
vigiar e punir os excedentes necessários ao sistema, durante um bom tempo)[7]; a
uniformização do direito de família e do direito de propriedade e com isto a
uniformização de comportamentos familiares e comerciais; a imposição de um
idioma, uma religião para a normalização de comportamentos; e para a exclusão
daqueles que resistem a esta uniformização, os presídios e manicômios; a
burocracia estatal, a Igreja oficial, a escola. o idioma oficial e outros
dispositivos que serão desenvolvidos com as transformações do estado, da
sociedade e da economia moderna.
Na América Latina os Estados
nacionais se formaram pelos e para os descendentes dos invasores europeus, a
partir das lutas pela independência no decorrer do século XIX. Um fator comum
nestes Estados é o fato de que, quase invariavelmente, foram Estados
construídos para uma parcela minoritária da população, onde não interessava
para as elites econômicas e militares que a maior parte da população se
sentisse integrante, se sentisse parte de Estado. Desta forma, em proporções
diferentes em toda a América, milhões de povos originários (de grupos indígenas
os mais distintos) assim como milhões de imigrantes forçados africanos, foram
radicalmente excluídos de qualquer idéia de nacionalidade. O direito não era
para estas maiorias, a nacionalidade não era para estas pessoas. Não
interessava às elites que indígenas e africanos se sentissem nacionais.
De forma diferente da Europa
onde foram construídos estados nacionais para todos que se enquadrassem ao
comportamento religioso imposto pelos estados, na América não se esperava que
os indígenas e negros se comportassem como iguais, era melhor que permanecessem
à margem, ou mesmo, no caso dos indígenas, que não existissem: milhões foram
mortos.
Neste sentido, as revoluções da
Bolívia e do Equador, seus poderes constituintes democráticos, fundam um novo
Estado, capaz de superar a brutalidade dos estados nacionais nas Américas e
romper com as bases uniformizadoras do direito de propriedade e de família que
sustentam o capitalismo: o Estado plurinacional, democrático e popular.
Nunca na América, tivemos tantos
governos democráticos populares como neste surpreendente século XXI. O
importante é que estes governos não são apenas democráticos representativos,
mas, fortemente participativos, dialógicos.
Uma idéia nova, neste processo
chama a atenção: o Estado Plurinacional das Constituições do Equador e da
Bolívia.
4.2-
O Estado Plurinacional
A idéia de Estado Plurinacional
pode superar as bases uniformizadoras e intolerantes do Estado nacional, onde
todos os grupos sociais devem se conformar aos valores determinados na
constituição nacional em termos de direito de família, direito de propriedade e
sistema econômico entre outros aspectos importantes da vida social. Como vimos
anteriormente o Estado nacional nasce a partir da uniformização de valores com
a intolerância religiosa.
A partir da constitucionalização
e sua lenta democratização (em geral, ainda de bases liberais meramente
representativas e pouco representativas) não se poderia mais admitir a
construção da identidade nacional com base em uma única religião que
uniformizasse o comportamento no plano econômico (direito de propriedade) e no
plano familiar. Tornou-se necessário construir uma outra justificativa e um
outro fator agregador que permitisse que os diversos grupos sociais presentes
no Estado moderno pudessem se reconhecer e a partir daí reconhecer o poder do
Estado como legitimo.
A Constituição irá cumprir está
função. Inicialmente não democrático, o constitucionalismo irá uniformizar
(junto com o direito civil) as bases valorativas desta sociedade nacional,
criando um único direito de família e um único regime de propriedade que
sustentaria o sistema econômico. Isto ocorreu em qualquer dos tipos
constitucionais capitalistas, seja liberal seja social-democrata.
A uniformização de valores e
comportamentos, especialmente na família e na forma de propriedade exclui
radicalmente grupos sociais (étnicos e culturais) distintos que, ou se
enquadram ou são jogados, aos milhões, para fora desta sociedade
constitucionalizada (uniformizada). O destino destes povos é a alienação, o
aculturamento e perda de raízes acompanhado da miséria, presídios e manicômios.
A lógica do Estado nacional,
agora constitucionalizado e mesmo “democratizado”, sustenta esta uniformização.
A ideologia que justifica tudo isto é a existência de um suposto “pacto social”
ou “contrato social”, ou qualquer outra idéia que procura identificar nas bases
destas sociedades americanas um suposto acordo uniformizador, como se as
populações originarias tivessem aberto mão de sua história e cultura para
assumir o direito de família e o direito de propriedade do invasor europeu, que
continuou no poder com seus descendentes brancos e mestiços a partir dos
processos de independência no século XIX.
A grande revolução do Estado
Plurinacional é o fato que este Estado constitucional, democrático
participativo e dialógico pode finalmente romper com as bases teóricas e
sociais do Estado nacional constitucional e "democrático"
representativo (pouco democrático e nada representativo dos grupos não
uniformizados), uniformizador de valores e logo radicalmente excludente.
O Estado plurinacional reconhece
a democracia participativa e dialógica como base da democracia representativa e
garante a existência de formas de constituição da família e da economia segundo
os valores tradicionais dos diversos grupos sociais (étnicos e culturais)
existentes.
Nas palavras de Ileana Almeida[8]
sobre o processo de construção do Estado Plurinacional no Equador:
“Sin embargo, no se toma
en cuenta que los gruos étnicos no luchan simplemente
por parcelas de tierras cultivables, sino por un derecho histórico. Por lo mismo se defienden las
tierras comunales y se trata de preservar
las zonas de significado ecológico-cultural.”
Certamente este Estado joga por
terra o projeto uniformizador do Estado moderno que sustenta a sociedade
capitalista como sistema único fundado na falsa naturalização da família e da
propriedade e mais tarde da economia liberal.
Nas palavras de Ileana Almeida:
“Al funcionar el Estado
como representación de uma nacion única cumple también
su papel en el plano ideológico. La privación de derechos políticos a las nacionalidades no hispanizadas lleva
al desconocimiento de la existência misma de
otros pueblos y convierte al indígena em vitima del racismo. La ideología de la discriminación, aunque no es oficial, de
hecho está generalizada em los diferentes
estratos étnicos. Esto empuja a muchos indígenas a abandonar su identidad y pasar a forma filas de la nación
ecuatoriana aunque, pólo general, en su
sectores más explotados.”[9]
A Constituição da Bolívia, na
mesma linha de criação de um Estado Plurinacional dispõe sobre a questão
indígena em cerca de 80 dos 411 artigos. Pelo texto, os 36 “povos originários”
(aqueles que viviam na Bolívia antes da invasão dos europeus), passam a ter
participação ampla efetiva em todos os níveis do poder estatal e na economia.
Com a aprovação da nova Constituição, a Bolívia passou a ter uma cota para
parlamentares oriundos dos povos indígenas, que também passarão a ter
propriedade exclusiva sobre os recursos florestais e direitos sobre a terra e
os recursos hídricos de suas comunidades. A Constituição estabelece a
equivalência entre a justiça tradicional indígena e a justiça ordinária do
país. Cada comunidade indígena poderá ter seu próprio “tribunal”, com juízes
eleitos entre os moradores. As decisões destes tribunais não poderão ser
revisadas pela Justiça comum.
Outro aspecto importante é o
fato da descentralização das normas eleitorais. Assim os representantes dos
povos indígenas poderão ser eleitos a partir das normas eleitorais de suas
comunidades.
A Constituição ainda prevê a
criação de um Tribunal Constitucional plurinacional, com membros eleitos pelo
sistema ordinário e pelo sistema indígena.
A nova Constituição democrática
transforma a organização territorial do país. O novo texto prevê a divisão em
quatro níveis de autonomia: o departamental (equivalente aos Estados
brasileiros), o regional, o municipal e o indígena. Pelo projeto, cada uma
dessas regiões autônomas poderá promover eleições diretas de seus governantes e
administrar seus recursos econômicos.
O projeto constitucional avança
ainda na construção do Estado Plurinacional ao acabar com a vinculação do
estado com a religião (a religião católica ainda era oficial) transformando a
Bolívia em um Estado
laico (o que o Brasil é desde 1891).
Outro aspecto importante é o
reconhecimento de várias formas de constituição da família.
Além de importante instrumento
de transformação social, garantia de direitos democráticos, sociais, econômicos
plurais, e pessoais diversos, a Constituição da Bolívia é um modelo de
construção de uma nova ordem política, econômica e social internacional. É o
caminho para se pensar em um
Estado democrático e social de direito internacional.
Citando novamente Ileana Almeida:
“En contra de los que podría pensarse, el
reconocimiento de la especificidad étnica no fracciona la unidad de las fuerzas
democráticas que se alinean en contra del imperialismo. Todo lo contrario,
mientras más se robustezca la conciencia nacional de los diferentes grupos, más
firme será la resitencia al imperialismo bajo cualquiera de sus formas
(genocídio, imposición política,, religiosa o cultural) y, sobre todo, la
explotación econômica”.
A América Latina (melhor agora a
América Plural ou Indo-afro-latino América), que nasce renovada nestas
democracias dialógicas populares, se redescobre também indígena, democrática,
economicamente igualitária e socialmente e culturalmente diversa, plural. Em
meio à crise econômica e ambiental global, que anuncia o fim de uma época de
violências, fundada no egoísmo e na competição a nossa América anuncia
finalmente algo de novo, democrático e diverso, capaz de romper com a
intolerância unificadora e violenta de quinhentos anos de Estado nacional.
5- UMA NOVA TEORIA DA
CONSTITUIÇÃO DEMOCRÁTICA PLURINACIONAL - A DEMOCRACIA CONSENSUAL
5.1- Democracia “versus”
constituição
Comentamos acima
que o constitucionalismo moderno não nasceu democrático e o seu processo de
transformação e lenta democratização ocorreu por força dos movimentos sociais do século XIX,
especialmente o movimento operário, os sindicatos e a constituição dos partidos
políticos vinculados às reivindicações e lutas operárias.
Vimos que a
função primeira de uma constituição liberal era de oferecer segurança aos
homens proprietários, e esta segurança era conquistada pela pretensão de
permanência e superioridade da constituição, o que geraria estabilidade social
e econômica para o desenvolvimento dos negócios dos homens proprietários.
Ao contrário da
constituição, democracia significa transformação, mudança, e logo risco. Uma
pergunta é necessária neste momento: porque democracia significa transformação,
mudança?
A dicotomia
entre segurança e risco, estabilidade e mudança, é uma dicotomia ocidental, que
se encontra na raiz de nossas vidas. Ao contrário de uma perspectiva
contraditória cultural entre busca do novo (risco) e busca de segurança, a
transformação é, talvez, inerente a toda a forma de vida conhecida. Todo o universo
de vida que conhecemos está em permanente processo de transformação. O próprio
universo está em processo de expansão e transformação permanente. O ser humano,
como ser histórico, contextualizado, é um ser em processo de transformação
permanente, independentemente de sua vontade. Entretanto temos outra
característica essencial: somos seres históricos e logo, vitimas e sujeitos da
história. Podemos construir nossa vida e nossas sociedades com um grau de
autonomia racional razoável desde que conheçamos os mais diversos limites
(culturais, históricos, biológicos, químicos, físicos, psíquicos, ideológicos,
etc) que atuam em nossa percepção e experimentação do mundo. A partir do
conhecimento psi descobrimos que, o que nos faz viver, o que nos coloca em pé todos
os dias é a perspectiva de transformação, a busca do novo, o preenchimento de
um vazio impossível de ser preenchido, ainda bem. Logo, uma sociedade livre e
democrática, onde os destinos desta sociedade sejam fruto da vontade das
pessoas que integram esta mesma sociedade, será uma sociedade em permanente
processo de transformação. A sociedade democrática é uma sociedade de risco na
medida em que é uma sociedade em mutação permanente.
Temos então a
equação do constitucionalismo "democrático" moderno. A tensão
permanente entre democracia e constituição; entre segurança e risco; mudança e
permanência; transformação e estabilidade. A busca do equilíbrio entre estes
dois elementos, aparentemente contraditórios, é uma busca constante. Democracia
constitucional passa a ser construída sobre esta dicotomia: transformação com
segurança; risco minimamente previsível; mudança com permanência.
Importante
lembrar que esta teoria, esta tensão entre democracia e constituição, se
constrói sobre conceitos específicos: constituição como busca de segurança e,
portanto, como limite às mudanças. O papel da constituição moderna é reagir às
mudanças não permitidas. Já, a democracia, é entendida como democracia
majoritária e representativa.
A base da teoria
da constituição moderna se fundamenta sobre esta dicotomia: a constituição deve
oferecer segurança nas transformações decorrentes do sistema democrático
representativo majoritário. Como é oferecida esta segurança?
Para que a
Constituição tenha permanência foram criados mecanismos de atualização do texto
constitucional: reforma do texto por meio de emendas e revisões. As emendas
constitucionais, significando mudança pontual do texto, podem ser aditivas,
modificativas ou supressivas. A revisão implica em uma mudança geral do texto.
As duas formas de atualização do texto devem ter, sempre, limites, que podem
ser materiais (determinadas matérias que não pode ser reformadas em determinado
sentido); temporais; circunstanciais (momentos em que a constituição não pode
ser reformada como durante o estado de defesa ou intervenção federal);
processuais (mecanismos processuais relativos ao processo de discussão e
votação que dificultam a alteração do texto). Desta forma, a teoria da
constituição moderna, procurou equilibrar a segurança com a mudança necessária
para que a constituição acompanhe as transformações ocorridas pela democracia
representativa majoritária. É justamente esta possibilidade de mudança
constitucional com dificuldade (limites) que permite maior permanência da
constituição e, portanto, maior estabilidade do sistema jurídico
constitucional. A constituição não pode mudar tanto que acabe com a segurança,
nem mudar nada o que acaba com sua pretensão de permanência. Daí que não pode a
teoria da constituição, admitir que as mudanças formais, por meio de reformas
(emenda ou revisão), sejam tão amplas que resultem em uma nova constituição.
Isto representaria destruir a essência da constituição moderna: a busca de
segurança. De outro lado, a não atualização do texto por meio de reforma, ou
ainda, a não transformação da constituição por meio das mutações
interpretativas (interpretações e reinterpretações do texto diante do caso
concreto inserido no contexto histórico), pode significar a morte prematura da
constituição destruindo a sua pretensão de permanência e logo, afetando sua
essência, a busca de segurança.
Este é o
equilíbrio essencial do constitucionalismo moderno "democrático",
considerando democracia enquanto representativa e majoritária, e constituição
enquanto limite e garantia de um núcleo duro imutável, contramajoritário, que
protege os direitos fundamentais das maiorias provisórias. É a partir desta
lógica que se pode compreender as teorias modernas da constituição.
Permanece ainda
uma questão fundamental: como a constituição não pode mudar tanto que
comprometa a segurança e de outra forma, não pode impedir as mudanças (se se
pretende democrática) de forma que comprometa sua permanência, haverá sempre
uma defasagem entre as transformações da sociedade "democrática" e as
transformações da constituição "democrática". O que decorre desta
equação é o fato inevitável (dentro deste paradigma) de que a sociedade
democrática mudará sempre mais e mais rápido do que a constituição é capaz de
acompanhar. E isto não pode ser mudado pois comprometeria a essência da
constituição e da "democracia" (permanência x transformação;
segurança x risco). Assim, inevitavelmente chegará o momento em que a sociedade
mudará mais do que a constituição foi capaz de acompanhar. Neste momento a
constituição se tornará ultrapassada, superada: é o momento de ruptura. A
teoria da constituição apresenta uma solução para estes problemas: o poder
constituinte originário, soberano, ilimitado do ponto de vista jurídico (e
obviamente limitado no que se refere a realidade social, cultural, histórica,
econômica).
Este é o momento
de ruptura. Entretanto, dentro de uma lógica "democrática"
constitucional esta ruptura só será legitima se radicalmente democrática. Só
por meio de um movimento inequivocamente democrático será possível (ou
justificável) a ruptura. Além disto, se só uma razão e ação democrática
justifica a ruptura com a constituição, está ruptura só será legitima se for
para, imediatamente, estabelecer uma nova ordem constitucional "democrática".
Assim, nesta perspectiva
teórica constitucional moderna, a democracia só poderá legitimamente superar a
constituição se for, para, imediatamente, elabora e votar uma nova constituição
"democrática". A democracia acaba com a constituição criando uma nova
constituição a qual esta "democracia" se submete. Esta é a lógica
histórica do constitucionalismo "democrático" moderno. Veremos mais
adiante como a democracia consensual plurinacional não hegemônica pode romper
com esta lógica. Antes, porém, vamos discutir um pouco mais a lógica
contramajoritária.
5.2- Os problemas da democracia
majoritária
O “casamento”
entre constituição e democracia significa, na prática, que existem limites
expressos ou não às mudanças democráticas. Em outras palavras, existem
assuntos, princípios, temas que não poderão ser deliberados. Há um limite à
vontade da maioria. Existe um núcleo duro, permanente, intocável por qualquer
maioria. A lógica que sustenta estes mecanismos se sustenta na necessidade de
proteger a minoria, todos e cada um, contra maiorias que podem se tornar
autoritárias, ou que podem desconsiderar os direitos de minorias (que poderão
se transformar em maiorias). Assim, o constitucionalismo significa mudança com
limites, transformação com segurança. Estes limites se tornaram os direitos
fundamentais. O núcleo duro de qualquer constituição "democrática"
(moderna, "democrática" representativa e majoritária) são os direitos
fundamentais.
Assim, os
direitos fundamentais construídos historicamente, são protegidos pela
constituição contra maiorias provisórias que em determinados momentos
históricos podem ceder a tentações autoritárias. Uma pergunta comum seria a
seguinte: pode a população, majoritariamente e livremente, escolher um regime
de governo não "democrático"? O exemplo não é pouco comum, mas,
geralmente é mal trabalhado. Muitas vezes a escolha de sistemas que não
correspondem ao padrão ocidental de "democracia" é vista como uma
escolha não legitima uma vez que nega a "democracia". Entretanto, o
conceito de democracia é diverso, e as formas de organização históricas, assim
como as formas de participação e construção da vontade comum em uma sociedade
também, o que confere uma maior complexidade a este debate, na maioria das
vezes, travado a partir de uma pretensa e falsa universalidade dos conceitos
ocidentais.
Mas voltando a
discussão realizada dentro do paradigma moderno de "democracia" constitucional
ocidental (europeia), a resposta para a pergunta acima, a partir da compreensão
da democracia constitucional, é que, não pode a maioria decidir "democraticamente"
contra a "democracia". A estes mecanismos de proteção às conquistas
históricas de direitos chamamos de mecanismos constitucionais contramajoritários.
Em momentos de crise podem os cidadãos cederem às tentações autoritárias e reacionárias
e a função da constituição é reagir a estas mudanças não permitidas. Há uma
perspectiva evolucionista linear que sustenta esta tese: a proibição do
“retrocesso” parte de uma perspectiva evolutiva muito confortável, e por isto
falsa.
Um exemplo claro
disto seria, por exemplo, considerar o direito fundamental à propriedade
privada como um direito intocável. O retrocesso para alguns liberais seria a
tentativa de limitar ou condicionar este direito. É claro que a discussão é
contextualizada, e não é tão simples quanto parece. O que é um retrocesso?
Sobre qual perspectiva teórico-filosófica podemos considerar a transformação ou
até mesmo a superação de um direito fundamental como um retrocesso ou evolução?
Outro aspecto é
necessário ressaltar a respeito da democracia majoritária. O voto, confundido
muitas vezes com a própria ideia de democracia, é na verdade um instrumento de
decisão, ou de interrupção do debate, de interrupção da construção do consenso,
e logo, um instrumento usado pela “democracia majoritária” para interromper o
processo democrático de debate em nome da necessidade de decisão.
Interessante
notar que o tempo do debate, da exposição das opiniões está cada vez mais
reduzido. Seja no parlamento, seja na sociedade, como mecanismo de "democracia"
semi-direta, o espaço dedicado ao debate de ideias e propostas se reduz. Cada
vez mais cedo o debate é interrompido pelo voto de maneira que em algumas
situações vota-se sem debate como acontece com o surgimento de mecanismos de
voto utilizando meios virtuais para a decisão sobre obras no orçamento
participativo, por exemplo. O essencial do processo participativo que é o
debate foi substituído prematuramente pelo voto. Outro aspecto importante do
mecanismo majoritário é o fato de se escolher um argumento, projeto, ideia. A
opção por um “melhor” argumento, por um argumento vitorioso por meio do voto
pode se constituir em um mecanismo totalitário. Se todo o tempo somos
empurrados a escolher o “melhor”, mesmo que afirmemos que o argumento (projeto,
ideia, política) derrotada permanecerá vivo, em uma cultura que premia todo o
tempo o melhor, o destino do derrotado pode ser, muitas vezes, o esquecimento
ou encobrimento. Vamos ver que no Judiciário vige a mesma lógica de argumentos
vitoriosos e derrotados.
Assim, tanto no
legislativo como no judiciário, a exposição de argumentos não visa a construção
de uma solução comum, mas sim, a escolha do argumento melhor. A pretensão de
vencer o argumento do outro (no parlamento e no judiciário) cria uma
impossibilidade da construção de um novo argumento a partir do diálogo. O ânimo
que inspira os debates no parlamento e no judiciário não é, em geral, a busca
de uma solução comum, mas a busca da vitória. Logo, perde a racionalidade, que
passa a ser comprometida pela emoção da vitória. A política, e mesmo o processo
judicial, passa a ser um espaço cada vez mais comprometido com a parcialidade e
muitas vezes com a mentira, mesmo que não consciente, algumas vezes. Se o
importante é vencer, se o importante é que o melhor argumento vença não há
nenhuma disposição para a composição, para ouvir o outro. No lugar de um
diálogo direto entre duas perspectivas visando a composição, o aprendizado com
o outro, ou a construção de um consenso onde todos ganhem, no processo
majoritário estas perspectivas passam a ser mostradas, apresentadas de forma
isolada, de forma a convencer não o outro, mas o juiz final, que se manifestará
pelo voto. Este juiz pode ser o povo, em um plebiscito; os representantes no
parlamento ou mesmo o juiz ou juízes em um processo judicial. O sistema
constitucional moderno de Judiciário e democracia representativa majoritária
funciona sobre a lógica de uma expressão romana: "Roma Locuta, Causa
finita" (Roma falou, causa encerrada). Neste sentido convém lembrar Slavoj
Zizek quando nos provoca com a inversão da expressão: "Causa locuta, Roma
finita".[10] Quando as pessoas
enxergarem o que a ideologia do poder hegemônico oculta, este estará acabado.
Mas, por enquanto, "Roma", o império, continua falando e até agora as
causas vão sendo enterradas, provisoriamente caladas, pois permanecem latentes.
A democracia
consensual, dialógica e não hegemônica parte de outros pressupostos e outra
compreensão do papel da democracia e da constituição, assim como dos direitos
fundamentais.
Vejamos.
CONCLUSÃO
A democracia consensual plural do novo
constitucionalismo latino-americano.
Uma vez
compreendida as bases do constitucionalismo moderno fica mais fácil compreender
a alternativa plurinacional de democracia, constituição e direitos fundamentais.
Comecemos pela
democracia. Ao contrário da "democracia" moderna essencialmente
representativa, a democracia do estado plurinacional vai além dos mecanismos
representativos majoritários. Não quer dizer que estes mecanismos não existam,
mas, sim, que devem ceder espaço crescente para os mecanismos institucionalizados
de construção de consensos em espaços não hegemônicos.
A proposta de
uma democracia consensual deve ser compreendida com cuidado no paradigma do
estado plurinacional. Primeiramente é necessário compreender que esta
democracia deve ser compreendida a partir de uma mudança de postura para o
diálogo. Não há consensos prévios, especialmente consensos lingüísticos,
construídos na modernidade de forma hegemônica e autoritária. O estado moderno
homogeneizou a linguagem, os valores, o direito, por meio de imposição do
vitorioso militarmente. A linguagem é, neste estado moderno, um instrumento de
dominação. Poucos se apoderam da língua, da gramática e dos sentidos que são
utilizados como instrumento de subordinação e exclusão. O idioma pertence a
todos nós e não a um grupo no poder. A linguagem, é claro, contem todas as
formas de violência geradas pelas estruturas sociais e econômicas. Logo, o
diálogo a ser construído entre culturas e pessoas deve ser despido de consensos
prévios, construídos por esses meios hegemônicos. Tudo deve ser discutido
levando-se em consideração a necessidade de descolonização dos espaços,
linguagens, símbolos e relações sociais, pessoais e econômicas. O dialogo
precisa ser construído a partir de posições não hegemônicas, e isto não é só um
discurso, mas uma postura.
A partir desta
descolonização da linguagem, das instituições e das relações, o diálogo se
estabelece com a finalidade de construção de uma nova verdade provisória, um
novo argumento. Ninguém deve pretender vencer o outro.
Os consensos
construídos são, portanto, sempre, provisórios, não hegemônicos, e não
majoritários. A necessidade de decisão não pode superar a necessidade da
democracia. Daí posturas novas precisam ser inauguradas. A postura não
hegemônica deve ser seguida por uma postura de construção comum de novos
argumentos. Não se trata, portanto, nem da vitória do melhor argumento, nem de
uma simples fusão de argumentos mas de novos argumentos que se constroem no
debate. Não é possível compreender uma democracia consensual com os
instrumentos, pressupostos e posturas de uma sociedade de competição
permanente. A democracia é impossível no capitalismo. Nenhum consenso se
pretende permanente, não só pela dinamicidade da vida como pela necessidade de
decidir sem que haja um vencedor, ou seja, sem que seja necessária a construção
de maiorias.
Compreendidos os
mecanismos de construção destes consensos democráticos, não majoritários, não
hegemônicos, não hierarquizados, plurais nas perspectivas de compreensão de
mundo, podemos compreender um novo constitucionalismo e uma nova perspectiva
para os direitos fundamentais.
Como a
democracia implica em mudança, transformação, mas estas mudanças não são
construídas por maiorias, mas, sempre, por todos, a constituição não necessita
mais ter um papel de reação a mudanças não autorizadas. Não há a necessidade de
mecanismos contramajoritários uma vez que não há mais a vitoria da maioria como
fator de decisão.
Assim, os direitos
fundamentais devem ser compreendidos como consensos construídos e reconstruídos
permanentemente. O estado e a constituição no lugar de reagir às mudanças não
previstas ou não permitidas, passa a atuar, sempre, favoravelmente às mudanças
desde que estas sejam construídas por consensos dialógicos, democráticos, logo
não hegemônicos, plurais, diversos, não hierarquizados e não permanentes.
Trata-se de uma
nova compreensão capaz de romper com o paradigma moderno de estado,
constituição e "democracia". Um conceito fundamental para
desenvolvermos e aprofundarmos a discussão é o de pluralismo epistemológico.
Esta será a nossa próxima análise.
BIBLIOGRAFIA:
1-
ELEY, Geoff.
Forjando a democracia – a história da esquerda na Europa, 1850 – 2000, Editora
Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2005.
2-
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Domenico. Liberalismo, entre a civilização e a barbárie, Editora Anita
Garibaldi, São Paulo, 2008.
3-
OLIVÉ, Leon.
Pluralismo Epistemológico, Muela Del Diablo editores, La Paz, Bolivia, 2009.
4-
SANTOS,
Boaventura de Souza. Pensar el estado y la sociedad: desafios actuales,
Wadhuter editores, Buenos Aires, 2009;
5-
LINERA, Alvaro
Garcia. El Estado. Campo de Lucha, Muela Del diablo editores, La Paz, Bolivia, 2010;
6-
DUSSEL, Enrique. 1492: El encubrimiento del
Outro – hacia El origem del mito de la modernidad, Plural editores, La Paz,
Bolivia, 1994.
7-
BADIOU, Alain.
São Paulo, editora Boitempo, São Paulo, 2009 e BADIOU, Alain. Circunstances, 3,
Portées Du mot “Juif”, lignes et Manifestes, Paris, 2005.
8-
CUEVA, Mario de
la, LA Idea de estado, Fondo de cultura económica, Universidad Nacional
Autonóma de México, México D.F., 1994.
9-
SEILER,
Daniel-Louis. Os partidos políticos, Brasilia: Editora UnB, São Paulo: Imprensa
Oficial do Estado, 2000.
10- DUVERGER,
Maurice. Les partis politiques. Paris, Colin, 1980.
11- BURDEAU, George;
HAMON, Francis e TROPER, Michel, Droit Constitutionnel, Librairie Général de
Droit e Jurisprudence, Paris, 1995, pag.316
12- SIÉYES, Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa. (Qui
est-ce que le tiers Etat) organização e introdução de Aurélio Wander Bastos,
tradução Norma Azeredo, Rio de Janeiro, Editora Líber Juris, 1986,
13- PINTO FERREIRA, Luis. Princípios Gerais de Direito
Constitucional Moderno, Volume 1, 6 edição, São Paulo, Editora Saraiva, 1983,
14- DANTAS, Ivo. Poder Constituinte e Revolução, Rio de
Janeiro, Editora Rio sociedade cultural Ltda., 1978,
15- CREVELD, Martin van Creveld. Ascensão e declínio do
Estado, Editora Martins Fontes, São Paulo, 2004.
16- CUEVA, Mario de la. La idea del Estado, Fondo de
Cultura Econômica, Universidad Autônoma de México, Quinta Edição, México, D.F.,
1996.
17- ALMEIDA, Ileana. El Estado Plurinacional – valor
histórico e libertad política para los indígenas ecuatorianos. Editora Abya
Yala, Quito, Ecuador, 2008.
18- ZIZEK, Em defesa das causas perdidas. Editora Boitempo,
São Paulo, 2011.
[1] - Mestre
e Doutor em
Direito Constitucional pela UFMG. Professor da PUC/MG e UFMG.
Coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito do
Sul de Minas. Pesquisador do projeto PAPIIT do Instituto de Investigaciones
Juridicas da Universidad Nacional Autonoma de Mexico.
[2] SIÉYES,
Emmanuel Joseph. A constituinte burguesa. (Qui est-ce que le tiers Etat)
organização e introdução de Aurélio Wander Bastos, tradução Norma Azeredo, Rio
de Janeiro, Editora Líber Juris, 1986, pp. 141-142.
[3]PINTO FERREIRA, Luis. Princípios
Gerais de Direito Constitucional Moderno, Volume 1, 6 edição, São Paulo,
Editora Saraiva, 1983, p.51.
[4] DANTAS, Ivo. Poder Constituinte e
Revolução, Rio de Janeiro, Editora Rio sociedade cultural Ltda., 1978, p.33.
[5] CREVELD, Martin van Creveld. Ascensão
e declínio do Estado, Editora Martins Fontes, São Paulo, 2004 e CUEVA, Mario de
la. La idea del Estado, Fondo de Cultura Econômica, Universidad Autônoma de
México, Quinta Edição, México, D.F., 1996.
[6] Utilizamos neste texto as palavras
identidade e identificações quase como sinônimos, ou seja, uma identidade se
constrói a partir da identificação de um grupo com determinados valores.
Importante lembrar que o sentido destas palavras é múltiplo em autores
diferentes. Podemos adotar o sentido de identidade como um conjunto de
características que uma pessoa tem e que permitem múltiplas identificações
sendo dinâmicas e mutáveis. Já a idéia de identificação se refere ao conjunto
de valores, características e práticas culturais com as quais um grupo social
se identifica. Nesse sentido não poderíamos falar em uma identidade nacional ou
uma identidade constitucional mas sim em identificações que permitem a coesão
de um grupo. Identificação com um sistema de valores ou com um sistema de
direitos e valores que o sustentam, por exemplo.
[7] Hoje não
é mais necessário um excedente de mão de obra. O capitalismo atual produz uma
massa crescente de desnecessários. Estas pessoas não servem para serem
exploradas, não servem nem mesmo como reserva de mão obra. São grandes
incômodos que ocupam espaços de total anomia e barbárie.
[8] ALMEIDA,
Ileana. El Estado Plurinacional – valor histórico e libertad política
para los indígenas ecuatorianos. Editora Abya Yala, Quito, Ecuador, 2008,
pág.21.
[9] ALMEIDA,
Ileana. El Estado Plurinacional – valor histórico e libertad política
para los indígenas ecuatorianos. Ob. Cit., pág.19.
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