A
manifestações no Brasil[1]
Quem
atribui sentido ao que acontece em nossa volta?
por
José Luiz Quadros de Magalhães
O filosofo esloveno Slavoj Zizek nos
alerta para o enorme poder que tem aqueles que podem construir o significado
das palavras e dos fatos, e, lógico, chegar até um numero expressivo
(gigantesco) de pessoas. Este é o papel da grande mídia: todo o tempo, este
poder, concentrado nas mãos de poucos grupos econômicos, procura mostrar às
pessoas, o significado do que ocorre, o significado de palavras (como
democracia, direitos humanos, desenvolvimento), atribuindo sentidos e
condicionando a percepção de um grande numero de pessoas sobre o que acontece
no mundo. Enfim, a grande mídia pretende construir o nosso senso comum, mas,
felizmente o seu poder tem limites, e hoje, as redes sociais e a mídia
alternativa cuida de evitar o poder total sobre nossas compreensões. Não
sejamos, entretanto, inocentes. Tudo é muito bem controlado, cada vez mais. Os
espaços alternativos são estreitamente vigiados, e hoje, as grandes empresas,
que financiam parte do poder (em em alguns casos todo ele), podem saber tudo
sobre nós. Com o aumento do dinheiro de plástico (cartões de débito e de
crédito) as empresas e o estado podem saber o que fazemos, os filmes que
assistimos, os livros que lemos, o que comemos e bebemos, quando e onde. Não é
ficção, é real e de conhecimento de todos, que prestam um pouco de atenção no mundo.
Quero falar sobre as manifestações
públicas que tomaram as ruas de diversas cidades do Brasil, da luta pela
atribuição de sentidos pela mídia e pelo poder econômico, assim como por nós,
todos, que participamos e que percebemos sua complexidade e diversidade,
marcado, entretanto, por um sentimento comum: um enorme mal-estar com o que
estamos vivendo pelo mundo afora. Há um mal-estar que não vai passar com o
atendimento de nenhuma reivindicação pontual, e isto pode ser perigoso se não
entendido. Precisamos pensar sobre o nosso mal-estar. Sobre o que há de comum
no mal-estar de cada um, nas grandes cidades e nas pequenas; nos que praticam
violência e aqueles que recusam a violência; na esquerda e na direita; entre
jovens e não tão jovens; entre todos, o que há em comum neste mal-estar? Um
processo de psicanálise coletiva, um encontro com nossa história (talvez,
melhor, estória), a busca do recalcado, do encoberto, do que realmente está nos
matando mas não somos capazes de entender, perceber, ou, muitas vezes, não
temos coragem de dizer, as vezes mesmo de pensar, talvez porque fomos proibidos
de pensar determinados pensamentos.
O
movimento começa com uma reivindicação pontual: a luta pela redução dos valores
das passagens de ônibus. Em uma cidade (em muitas cidades) onde as pessoas que
trabalham são obrigadas a permanecer em ônibus durante horas, em um transito
infernal, em uma sociedade com quase nenhuma solidariedade, muita competição e
egoísmo, a vida pode ser um inferno. É claro que a passagem não é o problema, e
o atendimento a esta reivindicação não irá atenuar o mal estar. Outras e outras
reivindicações virão, mas a razão do mal-estar não será contemplada.
Como
o mal-estar não passará, sem desocultar os seus reais motivos, outras
reivindicações surgem, entre genéricas e especificas, as manifestações começam
a revindicar a rejeição de emenda constitucional que retira poderes do
Ministério Público; a crítica a grande mídia; melhoria na educação e saúde; e
mais várias outras bandeiras que representam um incomodo imediato, de fácil
identificação. Seria a ideia de "investimento" da psicanálise: o
"investimento" em um incomodo aparente irá sempre ocultar o que
realmente causa o mal-estar, que permanecerá encoberto até o momento em que tivermos
coragem de investigar, descobrir e enfrentar o que está oculto em um lugar
seguro, desconhecido. Estamos proibidos de pensar no que está oculto e nos mata
sem sabermos.
A
discussão e a luta por estas demandas imediatas, e a constatação recorrente de
que o problema efetivamente não está ali, ameaça os interesses e a estabilidade
de um sistema socioeconômico que se sustenta no ocultamento de suas reais
razões. Daí, a reação dos que se beneficiam deste sistema. A indefinição e a
pluralidade de pautas e reivindicações e a incapacidade de percepção da real
causa do mal-estar, facilita o trabalho da reação.
O
movimento difuso permite as infiltrações, não só de pessoas, mas principalmente
de ideias, bandeiras, demandas. Começa a ação determinada de resignificação das
manifestações, especialmente na cabeça daqueles, que insatisfeitos, manifestam,
mas não sabem muito bem porque. Estas pessoas viram massa de manobra. A
insatisfação difusa se expressa em uma raiva sem direção. Esta direção pode ser
dada por quem tiver maior capacidade de fazê-lo. Massa de manobra, e não
apenas, pois os que se recusam a ser utilizados como tal, não terão suas
imagens mostradas na TV.
Estratégias
antigas, fascistas, são reutilizadas: a divisão da população entre amigos e
inimigos; a negação da diversidade, dos partidos políticos e a defesa da
unidade fundada no nacionalismo (nazismo); de outro lado a simplificação do
complexo quadro, na nomeação do inimigo e sua caracterização como não pessoa:
vândalos ou mesmo terroristas. As pessoas são reduzidas e julgadas por um nome
coletivo que lhes exclui a humanidade.
A
questão é que precisamos descobrir este mal-estar, que desencadeou o processo,
para evitar o seu uso por quem tem o poder para fazê-lo, e, para isto, no lugar
de simplesmente apoiar isto ou aquilo, precisamos fazer as perguntas e buscar
com coragem as respostas:
-
A questão não é apenas condenar policiais infiltrados que incentivam a
violência mas porque isto ainda é feito e porque ainda encontramos pessoas
capazes de fazer isto.
-
A questão não é apenas condenar o ativista de extrema-direita que queima e
quebra, agride e odeia, mas saber o porquê de tanto ódio e porque este ódio
ganhou esta direção.
-
A questão não é apenas denunciar as práticas autoritárias, ilegais e
inconstitucionais das policias do Rio, Minas e São Paulo (e outras mais), mas
entender porque estas práticas ainda existem mesmo após 25 anos do fim da
ditadura empresarial-militar que atrasou este país.
-
A questão não é apenas constatar mas entender porque, em Minas Gerais, a polícia
que deveria proteger o cidadão no seu direito de se expressar (um direito
constitucional), agride e proíbe o exercício de direitos constitucionais,
sabendo que esta violência só irá gerar manifestações mais violentas.
-
A questão não é perceber tudo isto, mas entender porque, ainda hoje, pessoas
são capazes de agir contra elas mesmas, contra os interesses de pessoas que ela
ama, contra os interesses de pessoas que vivem como elas e que vem dos mesmos
lugares, defendendo interesses que não são os seus, e pior são contra os seus.
-
A questão não apenas perceber, mas entender porque que as pessoas, embora
tenham mais capacidade de consumo hoje do que no passado, continuam infelizes,
mergulhadas em um mal-estar crescente.
Se
não formos capazes de entender os porquês (estes e muitos outros), dificilmente
sairemos das armadilhas que o poder constrói para evitar que consigamos
construir uma sociedade que tenha espaço para todos e cada um. A democracia é
apenas tolerada por aqueles que têm privilégios a proteger. Toda vez que
tentamos e tentarmos romper com estes privilégios, a democracia será rompida,
com o apoio de muitos dos oprimidos. Precisamos entender como se reproduzem os
"cães de guarda" do sistema. Aqueles que defendem os interesses que
são contra eles mesmos.
O
processo que se iniciou não tem volta. Não sabemos os resultados mas podemos
influenciar nele. Fazemos parte deste processo. Mesmo que as manifestações
diminuam, a insatisfação revelada continuará latente e se manifestará
diariamente de várias formas (aliás como já vinha ocorrendo sem que as pessoas
dessem o devido valor a estas manifestações). Podem dizer que mal-estar sempre
haverá, mas não estou dizendo de qualquer mal-estar, estou me referindo a um
mal-estar que Freud já chamara atenção: há um mal-estar na civilização
ocidental, o sistema moderno está acabando e o que as pessoas colocaram no
lugar não está claro, mas há sinais e tentativas de alternativas pelo mundo a
fora e entre nós.
O
sistema jurídico que construímos não resolve os problemas, não resolve os
conflitos. O sistema jurídico que construímos foi criado para conservar e
reagir às mudanças não permitidas. A "democracia" majoritária fundada
na ideia da vitória de um melhor argumento afasta os argumentos derrotados,
oculta a diversidade e condena o derrotado ao ocultamento. O problema é que
esta "democracia" não funciona sobre conflitos de argumentos uma vez
que a busca da vitória de seu projeto, ideia, partido, interesse, argumento,
não permite que se escute os argumentos dos outros. Não se escuta o outro para
aprender com o outro e construir novos argumentos. O que ocorre é que quando
escuto o outro, escuto com a finalidade de destruir o argumento do outro.
Entretanto, o problema é que, nem mesmo isto ocorre. O parlamento se
transformou em um mercado, em um espaço de negociações para realização de
desejos variados e não para discussão de argumentos racionais. A
"democracia" majoritária funciona sob a lógica do "roma locuta,
causa finita", ou seja, quando o império fala a controvérsia acaba. E
acaba não pela construção de um consenso, mas pela força do império, o que
significa que o conflito, a causa continua latente. A maioria disse, a minoria
acata, questão superada. Superada? Claro que não. Superada no processo
legislativo, no processo eleitoral, mas não no processo social, nos conflitos
reais de poder e interesse. A mesma lógica se aplica ao judiciário. Os
conflitos são levados até o judiciário, as partes argumentam, petição inicial,
contestação, recurso, razões, contrarrazões, toda a lógica de desenvolvimento
do processo judicial impede o consenso, incentiva a competição. Ao final, o
"império" (o estado, o juiz) "diz" e, logo, a
"causa" acabou. Acabou? Claro que não, o conflito permanece latente,
as pessoas insatisfeitas, vencedores e vencidos não se satisfazem, mas para o
processo judicial o conflito acabou, entretanto, na realidade não, ele
permanece latente para explodir de insatisfação um dia. Da mesma forma esta
sociedade emocional e não reflexiva, superficial, lida com seus problemas e
incômodos. Se aumenta a criminalidade, no lugar de buscar entender as razões
são buscadas simplesmente punições, como se a vida do nomeado "adolescente
infrator" já não fosse uma punição constante. No lugar de enfrentar o
problema para solucioná-lo, não, o que ocorre é aumentar o conflito com mais
punição. Este mecanismo, esta postura se alastra: não pensamos em entender o
conflito, em solucioná-lo, mas, atacá-lo, incentivando o conflito, aumentando o
mal-estar.
A
compreensão do mal-estar pode nos levar a inversão da proposta: "Causa
locuta, Roma finita". Mas para isto precisamos entender o mal-estar e a
partir de então construir uma causa comum. Isto é urgente.
Causa
locuta, roma finita
[1]
Texto escrito no decorrer da manifestações em Junho de 2013. Este texto foi
publicado no blog: www.joseluizquadrosdemagalhaes.blogspot.com, e teve 2000
acessos no dois primeiros dias.
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