Conto de uma cidade surreal.
José Luiz Quadros de Magalhães
Era uma
vez uma cidade que se tornou metrópole. Muito jovem foi submetida à ganância de
empreiteiros que construíram muitos prédios. Prédios e mais prédios. Asfaltaram
tudo. Homens empreendedores fizeram enormes crateras em suas lindas montanhas.
Nesta bela cidade, com um pôr do sol tão lindo que deu o nome a nossa cidade,
(contam isto, uma vez que seus habitantes não tinham mais tempo de olhar o sol
nem a lua), havia muita desigualdade. Em uma distância muito pequena alguns dos
seus habitantes viviam em aglomerados (um monte de gente apinhada em um espaço
pequeno) enquanto outros viviam em condomínios fechados (pouca gente vivendo em
espaços grandes e murados para se defenderem dos apinhados).
Os
apinhados resolveram, num certo dia, fazer uma festa. Festa tradicional onde
dançavam quadrilha, tomavam quentão e comiam pipoca, amendoim e outras coisas
que não se podia comer todo dia.
O poder
desta cidade estava organizado na forma de estado moderno. Era um poder
centralizado, organizado, burocratizado, encarregado de zelar pelo bem estar de
todas as pessoas: os apinhados e os “desapinhados”. Este poder nem sempre
existiu para zelar pelo bem estar de todos, mas, ao contrário, ele foi criado
para zelar pelo bem e os bens dos “desapinhados”, protegendo a propriedade
destes (muitas propriedades) contra os perigosos apinhados (“despropriados”
“desproprietários” ou seria “desapropriados” ou simplesmente sem propriedade).
Contam que este poder, deste estado moderno, se democratizou e agora deveria
zelar pelos bens e pelo bem dos apinhados e desapinhados, proprietários e
desproprietários. Difícil tarefa!
A tarefa
se tornava ainda mais difícil pelo fato de que este estado serviu durante quase
quinhentos anos aos desapinhados, ou seja, eles foram treinados durante muito,
muito tempo a reprimir, bater, intimidar, perseguir os apinhados (aquele
incomodo permanente, mas necessário, uma vez que os apinhados -
desproprietários - serviam aos desapinhados - proprietários - como, digamos,
quase escravos).
Logo,
como o estado já estava acostumado a reprimir; bater; torturar; encher o saco;
intimidar; humilhar; diariamente, durante quinhentos anos, os apinhados
(desproprietários), a tarefa agora de proteger a todos, incluindo os
apinhadosdesproprietários era um grande desafio.
Voltemos,
portanto, a nossa festa dos apinhadosdesproprietários. O que aconteceu foi
muito interessante. Como os apinhadosdesproprietários moravam em um lugar
apinhado de gente, e como a construção de suas despropriedades não observava os
aspectos mínimos de segurança, e como agora, o estado deveria zelar pela
segurança das pessoas (de todas as pessoas), antes da festa o órgão estatal
garantidor da segurança de todos foi verificar se o local, onde ocorreria a
festa, tinha segurança para fazer a festa, garantindo a INTEGRIDADE FISICA DE
TODOS. Ora, difícil isto, a despropriedade e o desbairro, onde desmoravam os
apinhadosdesproprietários, não era um lugar muito seguro. Logo, o órgão do
estado que agora garantia a segurança de todos PROIBIU a festa dos
apinhadosdesproprietários.
AÍ
recomeçou a tragédia (mais um capitulo, pequeno, pois esta tragédia já dura
quinhentos anos).
Muitos
apinhadosdesproprietários queriam fazer a festa assim mesmo. Afinal era ali que
eles desviviam e desmoravam.
ORA, O
ESTADO MODERNO NÃO PODERIA DEIXAR QUE ESTAS PESSOAS COLOCASSEM EM RISCO SUAS
VIDAS: A FESTA NÃO PODERIA OCORRER.
A
conclusão da história foi bem moderna: para proteger a integridade física das
pessoas a festa foi proibida, e para impedir que as pessoas fizessem uma festa
que colocava em risco a integridade dos apinhadosdesproprietários a polícia
(órgão de proteção de apinhados e desapinhados) foi chamada. A polícia chegou e
resolveu o problema, desceu o cacete (bateu, encheu o saco, humilhou, reprimiu
e violou a integridade física dos apinhadosdesproprietários) tudo isto para
evitar que fosse realizada uma festa que poderia colocar em risco a integridade
física dos apinhadosdesproprietários. Afinal, agora nesta república moderna
todos devem ser protegidos pelo estado.
Belo Horizonte surreal
Li
hoje, no Jornal Estado de Minas, uma noticia que deixaria Luis Buñuel (o
cineasta surrealista espanhol) impressionado e faria Salvador Dali (o pintor
surrealista também espanhol) pintar um novo quadro, uma Guernica em memória à
incessante repressão da pobreza (é impressionante como o estado “enche o saco
dos pobres”).
A
notícia tem o seguinte título: “Arraial proibido na Prado Lopes”.
Resumindo:
Moradores do aglomerado da Pedreira Prado Lopes organizaram uma festa “julina”.
A festa foi autorizada pela Prefeitura. O corpo de bombeiro fez a vistoria no
local para verificar se havia segurança para os moradores. Como foram
constatadas irregularidades que poderiam por em risco a segurança física dos
participantes da festa, o Ministério Público, para proteger estas pessoas
proibiu a festa. Como pessoas insistiram na festa e se manifestaram contra a
proibição a polícia foi chamada. Ocorreram confrontos violentos entre a polícia
e os manifestantes, pessoas tiveram sua integridade física violada, incluindo
uma criança de 6 (seis) anos que ficou ferida.
Estado de Minas, 16 de Julho de
2011, página 2.
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