O inferno e o capeta.
por José Luiz Quadros de
Magalhães
Nas
minhas aulas de Teoria do Estado, quando me refiro às políticas de
encarceramento em massa, que agora, em pleno século XXI, se repetem, lembro
que, para aquelas pessoas que não se adequavam aos estreitos padrões de
legalidade e normalidade estabelecidos pelos poucos (ricos) que se encontravam
(encontram em geral) no poder, existiam três destinos: o presídio, o manicômio
ou o inferno. Sempre brinco com meus alunos que o inferno seria a melhor opção
uma vez que o capeta não teria tanta criatividade para fazer tanta maldade como
as pessoas fazem nos presídios e manicômios.
Outro
dia, conversando com um colega, um bom cristão protestante, esse me dizia que
ele achava que a bondade de Deus era tão grande que, embora existisse inferno,
este lugar estaria vazio, pois Deus perdoaria e salvaria a todos.
O inferno
são os outros diria Camus. O inferno está na terra, experimentaram e
experimentam muitos. Os campos de concentração do passado e do presente; os
manicômios e presídios do passado e do presente; a tortura, a violência, a
tortura mental; a fissura da droga e a violência do estado; a miséria, a fome,
a doença e a solidão; o egoísmo e o capitalismo; a destruição e a indiferença,
a falta de solidariedade. E o capeta, ora, o capeta que tortura, que mata, que
se farta de ganhar tirando e explorando o trabalho dos outros; o capeta
arrogante que manda, que prende, que bate e exclui; o capeta está nos presídios
e manicômios; na direção das grandes empresas capitalistas, babando e
deliciando-se com o sofrimento dos outros.
A
construção cultural da ideia de inferno está presente em várias culturas. O
inferno seria o destino dos pecadores, não adaptados. Efetivamente a ideia de
inferno inspirou e inspira as punições aos não adaptados, que por sua não
adaptação devem ser punidos pois ameaçam o poder. Logo, a partir da aceitação
de um mundo transcendental dividido entre céu e o inferno (agora mais
simplificado depois que o Papa acabou com o purgatório), o mundo terreno também
passou a funcionar neste regime simplificado. O céu para quem merece (quem tem
poder e logo diz quem merece) e o inferno para aqueles que ameaçam os que
merecem. Nesta construção cultural do bem e do mal as pessoas se dedicaram a
construir infernos cada vez mais infernais para aqueles que foram (são)
considerados maus pelos que se encontravam (encontram) no poder. Surge então um
problema de lógica. Ao se esforçarem em tornar a vida dos maus, cada vez mais
infernal, os responsáveis pela construção do inferno na terra viraram capetas
(ou talvez demônios, os assessores do capeta). Assim, estas pessoas, ao criarem
o inferno se tornaram também maus e passaram a merecer o inferno após a morte.
Os maus (corruptos, assassinos, torturadores, egoístas, equivocados, perdidos)
passaram a ser torturados em instituições infernais (os hospícios, presídios,
delegacias de polícia, sanatórios, quartéis) por outros maus (corruptos,
torturadores, assassinos, perversos). Assim uma contradição cíclica se instalou
nesta lógica que nos acompanha até hoje, ao criarmos infernos para punir os
maus, nos tornamos maus merecedores do inferno. O problema que esta lógica
sustentada pelas religiões majoritárias no mundo, faz com que inclusive os
bons, que têm a justiça a seu lado, quando passarem a punir os maus
(torturadores de torturadores, ou assassinos de assassinos, ou corruptos de
corruptos) se tornarão os torturadores dos torturadores de torturados,
amparados por uma justiça ainda maior pois estarão punindo severamente os que
puniram aqueles que ameaçaram o poder com suas condutas inadaptadas.
Hoje imaginei que talvez o inferno, aquele inferno que muitos irão depois da
morte de seu corpo na terra, talvez este inferno não seja parecido com os manicômios
e presídios. O inferno está dentro da cabeça, o sofrimento e a dor, e para
estes que sofrem só há uma solução: carinho, atenção, paciência, consideração.
Os que vivem o inferno aqui na terra certamente não vão para o inferno depois
de morrerem. Então comecei a imaginar a instituição inferno para um deus bom: o
inferno, lugar para onde iriam aqueles que se perderam, que cederam à violência
e à dor; que cometeram pecados e que infernizaram a vida dos outros
transformando a vida destes um verdadeiro inferno.
Percebi
que, talvez, a única maneira de encerrar este circulo infernal de punição
severa dos punidores severos, seja a descoberta de que o inferno não pode
existir, nem mesmo para os construtores de infernos (infernos instituídos como
os presídios e os manicômios) ou o inferno dentro da cabeça (criado pela
insanidade de um mundo egoísta).
Logo,
acho que descobri a charada. A partir da noção daquele deus bom do meu amigo
protestante percebi que o que as religiões chamam de inferno (enquanto aquele
lugar destinado aos maus, os equivocados, perseguidos, corruptos, assassinos,
ladrões, torturados, egoístas, etc) em verdade são espaços de recuperação.
Imagino que, após a morte, os que não se perderam em meio à violência e o
egoísmo irão para uma sociedade livre, igualitária, sem fome e sem opressão,
sem exploração; solidária; sem doenças, sem desespero, sem consumo, sem
egoísmo; com muito amor e tesão; sem patrão; sem governos; sem dinheiro e
consumismo. Já os que se perderam, deverão ir para estes espaços de
recuperação. Nestes espaços poderão se libertar da ignorância, da raiva; do
egoísmo e da arrogância; da ansiedade e da perversidade. O lugar para os maus
será um lugar de tolerância, de estudo, de aprendizado, de paciência, de
libertação da pobreza de espírito. Este é o inferno do deus bom: talvez um
grande campo gramado, ao final uma praia, um mar manso, com água clara, raso,
tranqüilo, onde funcionários deste deus bom, com paciência e ciência ajudarão
finalmente aos corruptos, fascistas, assassinos, egoístas, torturadores se
livrarem da corrupção, da ignorância, da burrice e da mediocridade. Não vejo
outra forma de acabar com o inferno em que muitos, justa ou injustamente vivem
do que realmente acabando com este estúpido simbolismo de um inferno dirigido
pelos maus para os maus. Talvez junto com o fim do inferno acabemos de vez com
o maniqueísmo simplificador, com as nomeações redutoras da percepção da
complexidade humana, da percepção de um ser humano multidimensional, complexo,
distinto, mutável, permanentemente mutável.
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