segunda-feira, 18 de novembro de 2013

32- Crônica: O inferno e o capeta



O inferno e o capeta.



por José Luiz Quadros de Magalhães



Nas minhas aulas de Teoria do Estado, quando me refiro às políticas de encarceramento em massa, que agora, em pleno século XXI, se repetem, lembro que, para aquelas pessoas que não se adequavam aos estreitos padrões de legalidade e normalidade estabelecidos pelos poucos (ricos) que se encontravam (encontram em geral) no poder, existiam três destinos: o presídio, o manicômio ou o inferno. Sempre brinco com meus alunos que o inferno seria a melhor opção uma vez que o capeta não teria tanta criatividade para fazer tanta maldade como as pessoas fazem nos presídios e manicômios.

Outro dia, conversando com um colega, um bom cristão protestante, esse me dizia que ele achava que a bondade de Deus era tão grande que, embora existisse inferno, este lugar estaria vazio, pois Deus perdoaria e salvaria a todos.

O inferno são os outros diria Camus. O inferno está na terra, experimentaram e experimentam muitos. Os campos de concentração do passado e do presente; os manicômios e presídios do passado e do presente; a tortura, a violência, a tortura mental; a fissura da droga e a violência do estado; a miséria, a fome, a doença e a solidão; o egoísmo e o capitalismo; a destruição e a indiferença, a falta de solidariedade. E o capeta, ora, o capeta que tortura, que mata, que se farta de ganhar tirando e explorando o trabalho dos outros; o capeta arrogante que manda, que prende, que bate e exclui; o capeta está nos presídios e manicômios; na direção das grandes empresas capitalistas, babando e deliciando-se com o sofrimento dos outros.

A construção cultural da ideia de inferno está presente em várias culturas. O inferno seria o destino dos pecadores, não adaptados. Efetivamente a ideia de inferno inspirou e inspira as punições aos não adaptados, que por sua não adaptação devem ser punidos pois ameaçam o poder. Logo, a partir da aceitação de um mundo transcendental dividido entre céu e o inferno (agora mais simplificado depois que o Papa acabou com o purgatório), o mundo terreno também passou a funcionar neste regime simplificado. O céu para quem merece (quem tem poder e logo diz quem merece) e o inferno para aqueles que ameaçam os que merecem. Nesta construção cultural do bem e do mal as pessoas se dedicaram a construir infernos cada vez mais infernais para aqueles que foram (são) considerados maus pelos que se encontravam (encontram) no poder. Surge então um problema de lógica. Ao se esforçarem em tornar a vida dos maus, cada vez mais infernal, os responsáveis pela construção do inferno na terra viraram capetas (ou talvez demônios, os assessores do capeta). Assim, estas pessoas, ao criarem o inferno se tornaram também maus e passaram a merecer o inferno após a morte. Os maus (corruptos, assassinos, torturadores, egoístas, equivocados, perdidos) passaram a ser torturados em instituições infernais (os hospícios, presídios, delegacias de polícia, sanatórios, quartéis) por outros maus (corruptos, torturadores, assassinos, perversos). Assim uma contradição cíclica se instalou nesta lógica que nos acompanha até hoje, ao criarmos infernos para punir os maus, nos tornamos maus merecedores do inferno. O problema que esta lógica sustentada pelas religiões majoritárias no mundo, faz com que inclusive os bons, que têm a justiça a seu lado, quando passarem a punir os maus (torturadores de torturadores, ou assassinos de assassinos, ou corruptos de corruptos) se tornarão os torturadores dos torturadores de torturados, amparados por uma justiça ainda maior pois estarão punindo severamente os que puniram aqueles que ameaçaram o poder com suas condutas inadaptadas. 

            Hoje imaginei que talvez o inferno, aquele inferno que muitos irão depois da morte de seu corpo na terra, talvez este inferno não seja parecido com os manicômios e presídios. O inferno está dentro da cabeça, o sofrimento e a dor, e para estes que sofrem só há uma solução: carinho, atenção, paciência, consideração. Os que vivem o inferno aqui na terra certamente não vão para o inferno depois de morrerem. Então comecei a imaginar a instituição inferno para um deus bom: o inferno, lugar para onde iriam aqueles que se perderam, que cederam à violência e à dor; que cometeram pecados e que infernizaram a vida dos outros transformando a vida destes um verdadeiro inferno.

Percebi que, talvez, a única maneira de encerrar este circulo infernal de punição severa dos punidores severos, seja a descoberta de que o inferno não pode existir, nem mesmo para os construtores de infernos (infernos instituídos como os presídios e os manicômios) ou o inferno dentro da cabeça (criado pela insanidade de um mundo egoísta).

Logo, acho que descobri a charada. A partir da noção daquele deus bom do meu amigo protestante percebi que o que as religiões chamam de inferno (enquanto aquele lugar destinado aos maus, os equivocados, perseguidos, corruptos, assassinos, ladrões, torturados, egoístas, etc) em verdade são espaços de recuperação. Imagino que, após a morte, os que não se perderam em meio à violência e o egoísmo irão para uma sociedade livre, igualitária, sem fome e sem opressão, sem exploração; solidária; sem doenças, sem desespero, sem consumo, sem egoísmo; com muito amor e tesão; sem patrão; sem governos; sem dinheiro e consumismo. Já os que se perderam, deverão ir para estes espaços de recuperação. Nestes espaços poderão se libertar da ignorância, da raiva; do egoísmo e da arrogância; da ansiedade e da perversidade. O lugar para os maus será um lugar de tolerância, de estudo, de aprendizado, de paciência, de libertação da pobreza de espírito. Este é o inferno do deus bom: talvez um grande campo gramado, ao final uma praia, um mar manso, com água clara, raso, tranqüilo, onde funcionários deste deus bom, com paciência e ciência ajudarão finalmente aos corruptos, fascistas, assassinos, egoístas, torturadores se livrarem da corrupção, da ignorância, da burrice e da mediocridade. Não vejo outra forma de acabar com o inferno em que muitos, justa ou injustamente vivem do que realmente acabando com este estúpido simbolismo de um inferno dirigido pelos maus para os maus. Talvez junto com o fim do inferno acabemos de vez com o maniqueísmo simplificador, com as nomeações redutoras da percepção da complexidade humana, da percepção de um ser humano multidimensional, complexo, distinto, mutável, permanentemente mutável.

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