segunda-feira, 18 de novembro de 2013

30- Crônica: Todos nós temos nosso planeta Melancholia.



Todos nós temos nosso planeta Melancholia.
José Luiz Quadros de Magalhães


            O filme “Melancholia”do diretor dinamarquês Lars Von Trier, entre muitos dramas e provocações, nos fala de ritos, mitos e morte. Lars Von Trier é um provocador, sarcástico, que cumpre bem o seu papel de sacudir as verdades acomodadas. Gosto de gente assim. Como Slavoj Zizek na psicanálise e filosofia, Lars Von Trier não nos deixa quietos com certezas pacificadas. Meu amigo e poeta Virgilio Mattos também faz isto com as pessoas. É mais uma destas raras pessoas que nos empurram para qualquer lugar, desde que não seja aquele em que comodamente nos encontramos. Se não estamos acomodados, melhor ainda, pois saímos do incomodo em que nos encontrávamos estacionados, e não é nada bom ficar parado no incomodo. O incomodo é para nos fazer mexer.
            A primeira parte do filme nos fala de Justine (Kirsten Dunst). Justine tenta se adaptar ao roteiro comum das culturas hegemônicas a que nós todos nos encontramos submetidos. O filme começa com um casamento. Um casal que nas primeiras cenas está feliz, como se deve estar, no dia do casamento. Entretanto as coisas já começam a não funcionar quando a “limousine” não cabe na estrada que tem que passar. A recepção segue o roteiro, minuciosamente programado, até que Justine desiste de continuar interpretando. O rito exige que as pessoas sintam o que estava programado para sentir. Mas Justine não quer mais. A ruptura do rito destrói o mito: o casamento. Ora, se o rito era o caminho de passagem para um mito (uma estória socialmente construída que todos devem acreditar), o mito está desfeito. A passagem para o mito casamento estava desfeita, assim como qualquer possibilidade de acreditar naquela farsa. Quantas pessoas não se sentem obrigadas a serem felizes no dia do seu casamento (talvez todas com exceção de algumas poucas Justines). Esta é uma exigência mitológica entre muitas outras. A passagem pelo rito transforma de forma mágica a realidade. Homem e mulher se transformam em um casal idealizado. Difícil é manter o roteiro escrito por outros para o resto da vida.
            Mais adiante Justine diz não a outro rito pensado por sua irmã Claire (Charlotte Gainsbourg) para o fim do mundo, que aliás foi quem planejou a recepção (o rito) de seu casamento fracassado. Justine rompe com uma interminável série de expectativas de outros sobre sua pessoa:  as expectativas de sua mãe, seu pai, sua irmã, seu cunhado, seus convidados, os funcionários do Buffet do casamento, e do insuportável padrinho de casamento empresário. Aliás, as cenas que mostram seu padrinho, e chefe, são especialmente reveladoras da negação do roteiro por Justine. O padrinho é empresário, e vive seu papel interminável todo o tempo. O empresário discursa no casamento, promovendo a noiva diante de todos à diretora de criação e contrata um pobre coitado para perseguir a noiva e extrair desta um “slogan” para nova campanha publicitária de sua empresa. Ele necessita interpretar o seu papel (cumprir o seu roteiro) e mostrar o seu “micro” poder sobre quem se apresenta no seu caminho previamente traçado pelas convenções sociais. Somos todos atores que representamos papeis escritos por outros há muito tempo, distantes de nós. Justine também rompe com esta expectativa. Justine não quer mais responder a nenhuma expectativa do “outro”, Justine não quer mais nenhum rito ou mito, e por isto paga um preço. Justine “adoece”.
            A segunda parte do filme nos mostra Claire e o fim do mundo. Interessante neste momento a reação de três personagens (Claire, Justine e John) diante do próximo fim do mundo. O planeta “Melancholia” se aproxima do planeta Terra e ameaça tudo extinguir. Um planeta enorme, maior do que a terra, que não segue roteiro, o planeta não tem uma órbita previamente estabelecida, não obedece a roteiros, é imprevisível e assim nos ameaça e foge completamente ao nosso controle. Se “Melancholia” é maior do que nós e é imprevisível, não há proteção contra ele. Não há onde se esconder. Neste momento nos aproximamos mais de Claire. De forma diferente de sua irmã, Claire tem um mundo organizado, ela segue roteiros, rituais, acredita em mitos, o seu mundo se encontra organizado. Por este motivo Claire começa a perder o controle. Todo o seu mundo organizado está ameaçado. Neste momento Claire mostra sua fragilidade e desespero. Diante de um fato sobre o qual não tem controle Claire perde o seu controle. Justine, ao contrário, se mostra cada vez mais firme diante do fim iminente. O seu mundo interno já estava destruído, ou melhor, desconstruído.
            John, o marido de Claire (Kiefer Sutherland), durante todo o filme é quem que se mostra mais equilibrado. John estuda muito as coisas, como diz Claire, e a protege do seu medo do fim do mundo. John adora astronomia e explica para Claire que os cientistas não podem errar, que o planeta não se chocará com a Terra. John mente para Claire para lhe dar mais segurança. Ele sabe que há um risco de algo pior, mas, não acredita que ocorrerá o choque entre os planetas. John é um personagem interessante: conhecemos muitos John`s. Ele tem certezas, esconde de si mesmo as incertezas, e sobre argumentos científicos acalma Claire. Quando enfim descobre que a sua crença na ciência (que ele escolheu como certa pois atendia às suas expectativas, uma vez que John ignora e debocha dos cientistas que anunciam o fim do mundo), John não resiste e acaba com o seu mundo. Justamente o mais equilibrado, o mais adaptado, se mostra o mais frágil diante do comprometimento de todo aquele mundo perfeito que ele criou para si.
            No final Justine constrói um abrigo para a criança, filho de John e Claire. Um abrigo feito de pedaços finos de madeira encostados uns nos outros, sem teto. O frágil abrigo se mostra neste momento tão forte quanto qualquer rocha, abrigo nuclear, bunker, ou qualquer outra coisa, uma vez que a destruição é total, radical e inevitável.
            Todos nós temos nosso planeta “Melancholia”. Ele é a morte, inevitável, radical, contra a qual não existe abrigo, mas o melhor remédio é o abrigo que nós mesmos podemos fazer para receber sua chegada.

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