Todos nós temos nosso planeta
Melancholia.
José Luiz Quadros de Magalhães
O
filme “Melancholia”do diretor dinamarquês Lars Von Trier, entre muitos dramas e
provocações, nos fala de ritos, mitos e morte. Lars Von Trier é um provocador,
sarcástico, que cumpre bem o seu papel de sacudir as verdades acomodadas. Gosto
de gente assim. Como Slavoj Zizek na psicanálise e filosofia, Lars Von Trier
não nos deixa quietos com certezas pacificadas. Meu amigo e poeta Virgilio
Mattos também faz isto com as pessoas. É mais uma destas raras pessoas que nos
empurram para qualquer lugar, desde que não seja aquele em que comodamente nos
encontramos. Se não estamos acomodados, melhor ainda, pois saímos do incomodo
em que nos encontrávamos estacionados, e não é nada bom ficar parado no
incomodo. O incomodo é para nos fazer mexer.
A
primeira parte do filme nos fala de Justine (Kirsten Dunst). Justine tenta se
adaptar ao roteiro comum das culturas hegemônicas a que nós todos nos encontramos
submetidos. O filme começa com um casamento. Um casal que nas primeiras cenas
está feliz, como se deve estar, no dia do casamento. Entretanto as coisas já
começam a não funcionar quando a “limousine” não cabe na estrada que tem que
passar. A recepção segue o roteiro, minuciosamente programado, até que Justine
desiste de continuar interpretando. O rito exige que as pessoas sintam o que
estava programado para sentir. Mas Justine não quer mais. A ruptura do rito
destrói o mito: o casamento. Ora, se o rito era o caminho de passagem para um
mito (uma estória socialmente construída que todos devem acreditar), o mito
está desfeito. A passagem para o mito casamento estava desfeita, assim como
qualquer possibilidade de acreditar naquela farsa. Quantas pessoas não se
sentem obrigadas a serem felizes no dia do seu casamento (talvez todas com
exceção de algumas poucas Justines). Esta é uma exigência mitológica entre
muitas outras. A passagem pelo rito transforma de forma mágica a realidade.
Homem e mulher se transformam em um casal idealizado. Difícil é manter o
roteiro escrito por outros para o resto da vida.
Mais
adiante Justine diz não a outro rito pensado por sua irmã Claire (Charlotte
Gainsbourg) para o fim do mundo, que aliás foi quem planejou a recepção (o
rito) de seu casamento fracassado. Justine rompe com uma interminável série de
expectativas de outros sobre sua pessoa: as expectativas de sua mãe,
seu pai, sua irmã, seu cunhado, seus convidados, os funcionários do Buffet do
casamento, e do insuportável padrinho de casamento empresário. Aliás, as cenas
que mostram seu padrinho, e chefe, são especialmente reveladoras da negação do
roteiro por Justine. O padrinho é empresário, e vive seu papel interminável
todo o tempo. O empresário discursa no casamento, promovendo a noiva diante de
todos à diretora de criação e contrata um pobre coitado para perseguir a noiva
e extrair desta um “slogan” para nova campanha publicitária de sua empresa. Ele
necessita interpretar o seu papel (cumprir o seu roteiro) e mostrar o seu
“micro” poder sobre quem se apresenta no seu caminho previamente traçado pelas
convenções sociais. Somos todos atores que representamos papeis escritos por
outros há muito tempo, distantes de nós. Justine também rompe com esta
expectativa. Justine não quer mais responder a nenhuma expectativa do “outro”,
Justine não quer mais nenhum rito ou mito, e por isto paga um preço. Justine
“adoece”.
A
segunda parte do filme nos mostra Claire e o fim do mundo. Interessante neste
momento a reação de três personagens (Claire, Justine e John) diante do próximo
fim do mundo. O planeta “Melancholia” se aproxima do planeta Terra e ameaça
tudo extinguir. Um planeta enorme, maior do que a terra, que não segue roteiro,
o planeta não tem uma órbita previamente estabelecida, não obedece a roteiros,
é imprevisível e assim nos ameaça e foge completamente ao nosso controle. Se
“Melancholia” é maior do que nós e é imprevisível, não há proteção contra ele.
Não há onde se esconder. Neste momento nos aproximamos mais de Claire. De forma
diferente de sua irmã, Claire tem um mundo organizado, ela segue roteiros,
rituais, acredita em mitos, o seu mundo se encontra organizado. Por este motivo
Claire começa a perder o controle. Todo o seu mundo organizado está ameaçado.
Neste momento Claire mostra sua fragilidade e desespero. Diante de um fato
sobre o qual não tem controle Claire perde o seu controle. Justine, ao
contrário, se mostra cada vez mais firme diante do fim iminente. O seu mundo
interno já estava destruído, ou melhor, desconstruído.
John,
o marido de Claire (Kiefer Sutherland), durante todo o filme é quem que se
mostra mais equilibrado. John estuda muito as coisas, como diz Claire, e a
protege do seu medo do fim do mundo. John adora astronomia e explica para
Claire que os cientistas não podem errar, que o planeta não se chocará com a
Terra. John mente para Claire para lhe dar mais segurança. Ele sabe que há um
risco de algo pior, mas, não acredita que ocorrerá o choque entre os planetas.
John é um personagem interessante: conhecemos muitos John`s. Ele tem certezas,
esconde de si mesmo as incertezas, e sobre argumentos científicos acalma
Claire. Quando enfim descobre que a sua crença na ciência (que ele escolheu
como certa pois atendia às suas expectativas, uma vez que John ignora e debocha
dos cientistas que anunciam o fim do mundo), John não resiste e acaba com o seu
mundo. Justamente o mais equilibrado, o mais adaptado, se mostra o mais frágil
diante do comprometimento de todo aquele mundo perfeito que ele criou para si.
No
final Justine constrói um abrigo para a criança, filho de John e Claire. Um
abrigo feito de pedaços finos de madeira encostados uns nos outros, sem teto. O
frágil abrigo se mostra neste momento tão forte quanto qualquer rocha, abrigo
nuclear, bunker, ou qualquer outra coisa, uma vez que a destruição é total,
radical e inevitável.
Todos
nós temos nosso planeta “Melancholia”. Ele é a morte, inevitável, radical,
contra a qual não existe abrigo, mas o melhor remédio é o abrigo que nós mesmos
podemos fazer para receber sua chegada.
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