Entrevista para o Jornal Hoje em Dia,
em Junho de 2013, antes das manifestações populares.
Não foi publicada na integra.
PERGUNTAS:
1- Como o Sr. vê a tentativa, liderada por Cândido Vaccarezza (PT-RS) na Câmara dos Deputados, de flexibilização da Lei da Ficha Limpa?
A "lei da ficha limpa" deve
ser compreendida dentro do contexto em que vivemos de legalização da moral.
Isto não bom. É necessário que tenhamos o espaço da ética, da moral e do
direito. A "lei da ficha limpa" ofende direitos fundamentais que
pertencem a todos nós: a presunção de inocência, o duplo grau de jurisdição.
Mais, a "lei de ficha limpa" é uma tutela do estado sobre a escolha
livre dos cidadãos. Somos cada vez mais tratados como crianças incapazes de
fazermos nossas escolhas por um estado cada vez mais paternalista e
autoritário. Não podemos abrir mão de nossa liberdade em nome de uma falsa
segurança, que não virá, com este estado penal que estamos construindo. O pior
é que ficaremos sem liberdade e sem segurança pois quanto mais forte o estado,
mais arbitrário, mais ele invadirá a nossa vida. A oposição entre liberdade X
segurança é falsa.
Além disto, a "lei de ficha
limpa" ofende o direito de, uma vez pago o nosso erro (e todos erram)
tenhamos (todos nós) a possibilidade de começar de novo. Não podemos carregar
um ato errado praticado para o resto da vida. Neste ponto, o novo
constitucionalismo latinoamericano, representado principalmente pelas novas Constituições
da Bolívia e Equador, reconhece, entre diversos novos direitos democráticos, o
direito da pessoa não ser discriminada por atos praticados no passado e já
devidamente responsabilizados. Se a pessoa cumpriu uma pena por um erro, este
erro têm que ser apagado da vida da pessoa.
Assim temos alguns aspectos para pensar
sobre o espírito da "lei da ficha limpa": Um: a pessoa não deveria
pagar com os seus direitos políticos por ato do qual ainda caiba recurso; dois:
as pessoas têm que ter oportunidade de pagar pelos seus erros e a partir de
então poder recomeçar sua vida; três: não deveríamos aceitar um estado que
tutela nossas escolhas, somos cidadãos que devemos e que sabemos escolher o que
queremos, o estado não precisa nos dizer em quem podemos ou devemos votar;
quatro: o direito penal não resolve a criminalidade. Para diminuir ou mesmo
eliminarmos a corrupção, o que deve ser uma busca continua, precisamos
transformar nossa sociedade. Não adianta combater a corrupção com direito
penal, apenas, se as estruturas sociais, políticas e econômicas que geram esta
corrupção, continuam existindo. Existe uma expressão popular para isto: enxugar
gelo.
2 - O que a sociedade brasileira deve fazer para que o Congresso Nacional vote as reformas pendentes no calendário político?
Não há democracia sem povo. Não
adianta, apenas, construir o sistema político partidário mais sofisticado (o
que o nosso está longe de ser) se as pessoas não estiverem atentas, organizadas
para reivindicar e lutar por direitos. A política não se faz apenas nos
parlamentos e governos, a política deve ser uma ação cotidiana na vida das
pessoas. O que a sociedade brasileira deve fazer para que o Congresso vote as
reformas é se organizar, se interessar pela política, acompanhar como votam os
seus representantes e atuar, não votar mais em quem não cumpre sua função de
representação popular de forma adequada, fazer campanha contra estes
representantes ruins, pressionar, manifestar de forma democrática. Isto é parte
da democracia. Não há democracia sem povo politizado e organizado.
3- Combatida pelos prefeitos, que reclamam da "judicialização da política" patrocinada pelo Ministério Público, o Sr. é favorável à PEC 37? Quem perde com a queda-de-braço entre a Polícia Civil e o Ministério Público pela hegemonia do poder de investigação criminal?
A judicialização da política deve ser
compreendida como um fenômeno transitório. Se permanente não é bom. O
reconhecimento de direitos sociais e econômicos, de forma coletiva, pelo
judiciário, é algo muito importante. O problema é quando estes direitos sociais
são tratados pelo judiciário como direitos individuais. Isto implica em se
gastar mal os recursos públicos. O Judiciário e o Ministério Público não têm
meios para construir políticas públicas. Isto deve ser feito pelo executivo com
participação popular, e se o executivo não fizer, não cumprir a Constituição,
deve ser responsabilizado por meio, por exemplo, de um processo judicial. Daí a
admitir-se o Judiciário ou o MP fazerem políticas publicas, me parece um
equivoco, com consequências graves nos gastos com recursos públicos.
De outra forma, não me parece correto
retirar o poder de investigação do Ministério Público. O MP é uma função
constitucional autônoma do estado, equivalente a um poder do estado, é o quarto
poder, e assim deve permanecer, como ente autônomo apto para fiscalizar os
outros poderes e zelar pela Constituição, pelos direitos fundamentais. Aliás, a
autonomia do MP (função autônoma do estado que não integra nenhum dos outros
três poderes), inspirou a Constituição democrática da Venezuela que prevê a
existência de cinco poderes; o executivo, o legislativo, o judiciário, o poder
de fiscalização (MP, Defensorias e Tribunais de Conta) e o poder eleitoral
(também inspirado em nossa justiça eleitoral).
Sobre a investigação criminal
precisamos de uma reforma na polícia com a unificação funcional das polícias
civil e militar e a criação de equipes de investigação vinculadas ao caso
investigado.
4- Em seis Estados brasileiros o
Superior Tribunal de Justiça tenta licença para processar governadores e não
consegue avançar na investigação. Não consegue nem apurar as acusações que o
STJ considera sérias. Por que as Assembleias Legislativas não autorizam essas
investigações? São os representantes eleitos que podem cassar os representantes
do povo – e apenas eles?
Mas uma vez voltamos a questão
anteriormente dita. Não há democracia sem povo. Os cidadãos devem fiscalizar e
exigir dos seus representantes a conduta que estes cidadãos entendem correta. A
omissão dos eleitores faz com que maus políticos permaneçam exercendo suas
funções de representação de forma errada. Os cidadãos, com a ajuda da imprensa,
devem permanecer atentos e não eleger mais estes políticos que impedem a devida
apuração de irregularidade ou crimes. Este é o jogo político democrático. A
democracia confere responsabilidade a todos. Não adianta só ficar reclamando.
5- O Sr. apoia fim do voto secreto no
Legislativo? É favorável à aprovação da PEC 349/01 no Congresso e da PEC 3/11
na ALMG? Por que?
Claro que sim. O voto secreto no
legislativo é uma contradição. O legislativo é o espaço de discussões políticas
de interesse de todas as pessoas. No parlamento se encontram os nossos
representantes, que atuam em nosso nome, por isto a expressão democracia
representativa. Um parlamentar
(vereador, deputado estadual ou federal e senador) recebe um mandato do povo,
um mandato é como uma procuração. Eles são eleitos para nos servir e nos
representar. Nós, cidadãos, somos os verdadeiros titulares de seu mandato. Tudo
o que um parlamentar faz é em nome de quem concedeu a procuração (o mandato).
Logo, não há nenhuma base de sustentação lógica para o voto secreto dos
parlamentares nos legislativos. Nós, que passamos o mandato para o parlamentar
temos o claro direito de saber o que estão votando e como votam. Inclusive para
saber se efetivamente estão representando os nossos interesses, o interesse
público, o interesse do povo, e é claro que só o povo sabe quais são seus
interesses. O parlamento não é espaço de debate de interesses particulares.
6- O Sr. é favorável ao fim da reeleição e ao mandato único de cinco anos para presidente, governadores e prefeitos?
Não. Primeiro, acredito que precisamos
de uma reforma política que crie as bases para a construção de um sistema de
governo que possa ser mais democrático do que o sistema presidencial. No
sistema parlamentar, por exemplo, o governo permanece o tempo que o povo e seus
representantes desejarem. Se o governo está bom, permanece, se está ruim, sai.
Assim temos no parlamentarismo governos que duraram alguns dias até governos
que duraram 16 anos, como o de Kohl na Alemanha. Não acredito que devamos ser
obrigados a mudar o que esta funcionando, nem continuar com o que não funciona.
Por este motivo sou favorável a possibilidade, por exemplo, do povo decidir se
quer continuar ou não com um governo, criando inclusive mecanismos de
afastamento do presidente (o referendo popular revocatório no meio do mandato,
que está previsto na Constituição da Venezuela, por exemplo) ou de reeleição,
se assim o povo decidir. O que é necessário assegurar é a liberdade de
expressão efetiva, a liberdade de imprensa efetiva, de forma que todas as
formas de pensar existentes na sociedade possam de manifestar com a mesma força,
o que atualmente não acontece no Brasil e em grande parte das democracias
representativas. A grande mídia representa os mesmos interesses de grandes
empresas privadas e as mídias alternativas ou outras mídias, não têm a mesma
força. O jogo está desequilibrado no Brasil. Muitas ideias não tem a mesma
visibilidade do que as ideias defendidas pelos grande meios de comunicação no
Brasil. Por este motivo digo que não há igualdade de oportunidades para as
diversas correntes de pensamento político e econômico se apresentarem para a
população. Algumas ideias têm muito mais visibilidade do que outras.
7- O Sr. é favorável à redução da
maioridade penal?
Claro que não. Isto é uma tremenda
bobagem. É um perigo, a aposta atual no direito penal, como solução de tudo.
Necessitamos investir na construção de uma sociedade ética, onde as pessoas
ajam de determinada maneira que a sociedade espera, não porque têm medo do
direito penal, mas porque acreditam que aquela maneira de agir é a correta; ou
seja, porque estão convencidos de que aquela conduta ética é a conduta
acertada. O problema de criminalizar tudo, é que precisaremos de um mega
estado, que controlará a nossa vida, e se o estado faltar, não nos restará
nada, pois a ética e a moral foram transformadas em lei. A questão é o que o
estado já não dá conta de controlar e fiscalizar a aplicação das leis
existentes, e se o estado falhar estará desmoralizado, e perderemos o controle
de tudo. O direito penal só pode ser chamado em ultimo caso, e quando se
apresentar não pode falhar. Só assim teremos respeito às leis e ao estado. Este
super estado penal punitivo que estamos construindo com apoio de parcela
importante da opinião pública é um risco para nossa liberdade, privacidade,
intimidade e também para nossa segurança. O direito penal não resolverá a
violência existente (nunca resolveu), precisamos entender as razões da
criminalidade e resolvê-las, e não, de forma irresponsável, fazermos um
discurso emocional, raivoso que só agravará a situação.
Alguns políticos, de maneira bastante
irresponsável, vêm fazendo um discurso raivoso, de ódio, o discurso punitivo. O
que precisamos é pensar porque a violência aumenta diariamente, no Brasil,
mesmo com a criação de emprego e aumento na capacidade de consumo de milhões de
pessoas como ocorre no Brasil no últimos 10 anos. Não adianta aquele discurso
vazio, bobo, de que bandido tem que ir pra cadeia, isto não resolve nada. É
preciso que sejamos capazes de, primeiro, entender as causas das criminalidade
para então eliminá-las. A redução da maioridade penal chega a ser ridícula: não
temos presídios suficientes, os existentes são péssimos, e as pessoas que
passam pelo sistema prisional saem piores do que entraram. E aí, o que alguns
irresponsáveis defendem? prender mais. Temos é que tirar as pessoas dos
presídios. Em vez de investirmos em escolas, hospitais, saúde preventiva,
moradia, vamos construir mais presídios? Isto me parece ridículo. E não me
venham falar na loucura da privatização dos sistema prisional, que além de
inconstitucional incentiva o crime para aprisionar mais, e logo, lucrar mais.
Além do mais, é mais caro para o estado, e logo, para os nossos bolsos de
contribuintes. O problema é que algumas pessoas se recusam a pensar
racionalmente na solução do problema e vêm com um discurso raivoso de punição
completamente sem fundamento, incentivado por políticos incompetentes que não
foram capazes de encontrar solução para o problema, mesmo porque não estudaram
minimamente a questão. Punir o menor infrator? Ora, a vida deles já é uma
punição desde o dia que nasceram. Outro absurdo é tratar a questão das drogas
como questão de polícia. Ora, para começar a resolver o problema das drogas é
preciso acabar com a droga de vida que estas pessoas levam.
8- O Sr. considera que há uma tendência
do Judiciário brasileiro de criminalizar os movimentos sociais, indígenas e
quilombolas?
Mais do que no Judiciário, onde também
ocorre, vemos isto nos executivos estaduais e municipais. Em nosso município de
Belo Horizonte, a prefeitura trata os pobres como bandidos. As ocupações
urbanas legitimas, reivindicando moradia, são criminalizadas pelo executivo
municipal. Assistimos no Brasil um dos casos mais vergonhosos de criminalização
dos pobres e dos movimentos sociais em São Paulo, no episódio de Pinheirinhos.
Aliás, isto continua ocorrendo todos os dias e vai piorar muito com estes
eventos de copa das confederações e copa do mundo, caça níqueis de grandes
empresas globais que expulsou o povo dos campos de futebol.
9- A Comissão Nacional da Verdade tem a
tarefa de desvelar a tortura como política de Estado na apuração das violações
aos direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988, período que abrange desde o
governo Dutra até a publicação da Constituição Federal. Como o Sr. avalia esta
iniciativa e o trabalho que está sendo feito?
Este trabalho é fundamental para a
afirmação da democracia e o fim da violência de estado no Brasil. É necessário
resgatar a memória, recontar a história e enfrentar os fantasmas do passado
para que possamos construir um novo futuro. Não se pode fingir que o que
aconteceu não aconteceu. Isto tem consequências graves para a sociedade
brasileira. Hoje por exemplo, vemos mais tortura do que no tempo da ditadura.
Existem "blitz" em cada esquina, vivemos um estado policial e muita gente,
desavisada, achando isto bom. Precisamos saber o que foi a ditadura e o que
ainda resta dela no nosso cotidiano. Para isto a comissão da verdade e memória,
para que depois possamos fazer justiça, a chamada justiça de transição.
10- A reforma do Estado, pretendida pelo jurista Hélio Bicudo (ex-deputado constituinte do PT-SP), previa uma ampla reforma do Judiciário.Considerado um dos poderes que menos se modernizou no Brasil, o Judiciário precisa de controle externo ou o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) é o bastante?
O CNJ, embora de constitucionalidade
duvidosa, quando intervém na autonomia constitucional dos entes federados
(estados), ajudou a mudar coisas importantes. Precisamos investir mais e uma justiça de mediação, o que pode inclusive,
ser assumido pelos municípios. Não seria um poder judiciário municipal, pois
isto depende de reforma constitucional uma vez que os municípios, na atual
conformação constitucional de nossa federação, não podem ter poder judiciário,
mas de uma justiça administrativa municipal de mediação. A mediação é o caminho
para a solução de conflitos.
11- O Sr. concorda com a afirmação do deputado federal Nilmário Miranda, ex-ministro da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, de que a Justiça no Brasil é classista, machista, homofóbica e racista?
Em parte. A generalização não é correta
mas, sem dúvida, estes valores são muito fortes entre a população que recebeu
nas escolas uma educação moderna uniformizadora e logo excludente e
preconceituosa. O problema não está no judiciário, está na sociedade. Mas isto
está mudando, e até bastante rápido, apesar da reação raivosa de muitos.
12- O sistema prisional brasileiro é uma vergonha, segundo especialistas, porque não reduziu a reincidência: mais de 80% dos condenados retornam ao crime. No Brasil, para reduzir a incidência do crime, a solução seria a Parceria Público Privada para construção e administração de presídios, como fez o Governo de Minas Gerais?
Claro que não. Precisamos investir em
descriminalização das drogas por exemplo, penas alternativas. Temos
experiências de sucesso em Minas Gerais.
Como dito acima, a privatização do
sistema carcerário, mesmo disfarçada de parceria público privada, é imoral e
inconstitucional. Nos Estados Unidos a privatização do cárcere aumentou o
aprisionamento (sempre dos mais pobres) e aumentou a corrupção, a médio prazo.
A solução não é prender mas mudar as estruturas sociais e econômicas de nossa
sociedade e substituir valores individualistas, egoístas e de competição por
solidariedade, respeito e igualdade.
13- A violência desafia o Estado brasileiro. Apesar dos avanços sociais, a sociedade ficou mais violenta. O combate à violência tem de ser enfrentado junto com a reforma das polícias civil e militar?
A reforma das polícias, como dito
acima, é importante, mas a questão da violência não será resolvida com o
combate a violência subjetiva, ou seja, o combate aos atos de violência que
quebram uma aparente situação de normalidade não violenta. Isto é controle, e o
controle, ao dar uma falsa situação de segurança, pode ser mais perigoso, pois
controle controla e não resolve o problema. Assim, enquanto achamos que estamos
seguros com mais câmeras, mais direito penal, mais polícia, mais
"blitz", as estruturas violentas de nossa sociedade estão produzindo
mais insatisfação, mais raiva, mais revolta, mais violência, mais pessoas
violentas. A questão é que as sociedades capitalistas de alto consumo,
individualistas, competitivas e egoístas, são permanentemente violentas e
excludente em suas estruturas sociais, morais, econômicas e simbólicas. Esta
violência é permanente e gera permanentemente violência. Enquanto não acabarmos
com a violência objetiva (estrutural) e a violência simbólica, em nossas
sociedades, de nada adiantará direito penal, lei de ficha limpa, lei seca,
reforma das polícias e outras coisas mais, por que esta sociedade,
intrinsecamente violenta, continuará produzindo cada vez mais pessoas
violentas.
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