O vazio político: partidos não ideológicos?
por José
Luiz Quadros de Magalhães
A eleições italianas de fevereiro de
2013 nos convida a refletirmos a realidade das democracias representativas e
majoritárias, radicalmente em crise na Europa e EUA. Não vamos tratar aqui da
ausência de opções, mas das falsas opções que se apresentam, muitas vezes
mostradas de forma corajosamente inocente. Trata-se da armadilha do discurso
moralista de combate a corrupção e do fim das ideologias apresentado por
políticos e novos partidos que dizem não se enquadrar nas classificações
tradicionais de centro, direita e esquerda. A superficialidade do discurso pode
condenar estes partidos ao fracasso, fracasso perigoso, pois o processo em que
estas "soluções" se apresentam encobrem as reais causas de tudo o que
está ocorrendo.
Em primeiro lugar, podemos nos
perguntar o que é ideologia, para podermos entender o surgimento de partidos
políticos que se dizem pós-ideológicos ou neutros o que é uma gigantesca
bobagem.
A palavra ideologia pode ser
compreendida como uma sistema de ideias mais ou menos coerente, por meio do
qual acessamos o mundo. Nosso olhar, neste sentido é sempre ideológico. Um
outro sentido para a palavra ideologia é a sua compreensão como mecanismo
proposital de encobrimento, mecanismo de distorção da realidade. Neste sentido
ideologia é mentira. Os mecanismos ideológicos de distorção e encobrimento
atuam em dois grandes espaços: na formação de nossa compreensão do mundo, na
atribuição de significados aos significantes essenciais (o que a família, a
escola e a igreja faz com as pessoas nos primeiros anos de vida), e no
encobrimento e distorção dos fatos, nos impedindo de construir nossa
interpretação sobre o "real" ao nos impedir o acesso aos fatos, ou
então, ao distorcer estes mesmo fatos (o que a mídia, a propaganda, o
marketing, a igreja, a universidade, os cursos técnicos e outros aparelhos
continuam fazendo com as pessoas para o resto da vida). Reconhecendo que não há
fatos puros (não temos acesso ao "real" mas sim a
"realidade" que é o "real" interpretado), os mecanismos
ideológicos encobrem o "real" (que pode ser compreendido também como
sendo o próprio aparelho ideológico). Assim, no lugar de construir nossa
interpretação sobre o "real" construímos nossa interpretação do
"real" (a realidade) sobre uma falsa representação deste.
Nós, pessoas (seres que vivem), somos autopoiéticos (auto-referenciais e auto-reprodudivos). Isto significa que somos seres interpretativos. Nossa única possibilidade de acessar o "real" que está fora de nós será sempre, inevitavelmente, por meio de nós mesmos. Assim, estamos, por enquanto e até onde podemos compreender e experimentar, condenados a nós mesmos. Entre nós e o "real" estamos nós mesmos, e o que podemos conhecer é a "realidade", ou seja, o "real" interpretado. O que chamamos de "real" é um, possivelmente existente, absoluto inacessível, ao qual teremos acesso a fragmentos interpretados pelo nosso "olhar". Por vezes encontramos o "real" em sua forma brutal, como experiência radical e violenta e logo indescritível: a violência de um "campo de concentração", nos muitos que existem por aí. O real é a base para a construção das realidades, o que seria desejável, mas que raramente ocorre nestes tempos de embates ideológicos radicais pela construção dos sentidos dos fatos, das palavras, dos sistemas, da existência, enfim, do sentido de onde nos encontramos e do que fazemos no mundo.
Nós, pessoas (seres que vivem), somos autopoiéticos (auto-referenciais e auto-reprodudivos). Isto significa que somos seres interpretativos. Nossa única possibilidade de acessar o "real" que está fora de nós será sempre, inevitavelmente, por meio de nós mesmos. Assim, estamos, por enquanto e até onde podemos compreender e experimentar, condenados a nós mesmos. Entre nós e o "real" estamos nós mesmos, e o que podemos conhecer é a "realidade", ou seja, o "real" interpretado. O que chamamos de "real" é um, possivelmente existente, absoluto inacessível, ao qual teremos acesso a fragmentos interpretados pelo nosso "olhar". Por vezes encontramos o "real" em sua forma brutal, como experiência radical e violenta e logo indescritível: a violência de um "campo de concentração", nos muitos que existem por aí. O real é a base para a construção das realidades, o que seria desejável, mas que raramente ocorre nestes tempos de embates ideológicos radicais pela construção dos sentidos dos fatos, das palavras, dos sistemas, da existência, enfim, do sentido de onde nos encontramos e do que fazemos no mundo.
Partidos que se dizem não
ideológicos são portanto uma impossibilidade ou algo indesejável.
Impossibilidade pois todos nós somos, no sentido positivo, seres ideológicos
que permanentemente interpretamos o mundo por meio de nossas pré-compreensões.
Indesejável uma vez que um partido sem ideologia (ainda no sentido positivo)
seria um partido sem programa, sem marco teórico para compreensão do mundo, da
sociedade, da economia e da política. Um partido não ideológico seria portanto
um partido de mentira ou ideológico no sentido negativo. Poderiam dizer que
estes partidos não se enquadram nas classificações tradicionais modernas
ocidentais de centro, esquerda e direita, mas este não parece ser o casos,
mesmo porque um partido fora do sistema dificilmente poderia atuar dentro deste
sistema. Este é o perigo da crítica generalizada aos políticos e a política. O
problema não são os políticos, nem a política, mas como é feita a política e em
que sistema se inserem os políticos e a política. Neste sentido, estes partidos
sem ideologia (por isto altamente ideológicos no sentido negativo) tendem a
reproduzir tudo o que os partidos que eles dizem combater fazem, uma vez que
aceitam entrar no sistema e atuam inocentemente dentro do sistema com uma
crítica moralista perigosa. Da mesma forma, os políticos antipolíticos ao
entrarem no sistema representativo (o partido antipolítico "Cinco
Estrelas" da Itália fez 25% do parlamento) tendem rapidamente a serem
absorvidos pelo sistema que eles combatem moralmente, logo superficialmente.
O filósofo esloveno Slavoj Zizek em
sua obra "Sobre la violencia: seis reflexiones marginales"1 desenvolve
três conceitos de violência que são importantes para entendermos os equívocos
das políticas publicas de combate à violência e que podem ser utilizadas para
compreender o equivoco das criticas e ações políticas superficiais moralistas
que ignoram a necessidade de compreensão e desmonte das armadilhas estruturais
e simbólicas do sistema.
Zizek nos fala de três formas de violência:
Zizek nos fala de três formas de violência:
a) Uma
violência subjetiva que representa a decisão, vontade, de praticar um ato
violento. A violência subjetiva representa a quebra de uma situação de
(aparente) não violência por um ato violento. A normalidade seria a não
violência, a paz e o respeito às normas (normalidade) que é interrompida por um
ato de vontade violento.
b) A violência
objetiva, diferente da violência subjetiva é permanente. A violência objetiva
são as estruturas sociais e econômicas, as permanentes relações que se
reproduzem em uma sociedade hierarquizada, excludente, desigual, opressiva e
repressiva.
c) A violência
simbólica é também permanente. Esta violência se reproduz na linguagem, na
gramática, na arquitetura, no urbanismo, na arte, na moda, e outras formas de
representação. Para entendermos melhor, podemos exemplificar a violência
simbólica presente na gramática: em diversos idiomas os sobrenomes se referem
exclusivamente ao pai ou ainda, o plural, no idioma português, por exemplo,
sempre vai para o masculino. Assim, se estiverem em uma sala 40 mulheres e um
homem, diremos: "eles estão na sala". O plural para uma mulher
passeando com um cachorro será: "eles estão passeando". A violência
simbólica, assim como a violência estrutural, objetiva, atuam permanentemente.
Assim, de nada adianta construirmos
políticas públicas de combate à violência subjetiva sem mudarmos as estruturas
socioeconômicas opressivas e desiguais (violentas) ou todo o universo de
significações e representações que reproduzem a desigualdade, a opressão e a
exclusão do "outro" diferente, subalternizado, inferiorizado.
Um exemplo interessante: a escola
moderna é um importante aparelho ideológico2, reproduzindo a
mão de obra necessária para ocupar os postos de trabalho que permitirão o
funcionamento do sistema socioeconômico assim como reproduzindo os valores e
justificativas necessárias para que as pessoas se adequem e não questionem
seriamente o seu lugar no sistema social (e no sistema de produção e
reprodução). A escola, portanto, tem a fundamental função de uniformizar
valores e comportamentos. O recado da escola moderna é: adeque-se; conforme-se;
este é o seu lugar no sistema.
Simbolicamente, a escola moderna diz
diariamente isso aos seus alunos, por meio do uniforme. Sem o uniforme, a meia,
a calça, a camisa e os sapatos da mesma cor, o aluno não pode assistir a aula.
Durante muito tempo, e ainda hoje em algumas escolas, uniformizam-se os
cabelos, o andar, o sentar, e claro mais um monte de outras coisas mais
complexas como o pensar, o desejar e o gostar. A criança desde cedo deve se
vestir da mesma forma, se comportar da mesma maneira, palavras mágicas, sem as
quais as portas não se abrem. Pois bem, vamos ao problema: a criança, mesmo que
não seja dito por meio da palavra (o que também ocorre), simbolicamente
percebe, diariamente, todo o tempo, que não há lugar para quem não se normaliza,
para quem não se uniformiza, para quem não aceita a padronização. O recado
muito claro da escola moderna é: o uniformizado é o bom; não há lugar para o
diferente (não uniformizado); para o que se comporta diferente, se veste
diferente, ou de alguma forma não se enquadra no padrão. É claro que esta
criança, processando o recado permanente (dito e repetido de várias formas) irá
compreender que o padrão é bom e o diferente do padrão é ruim. No seu universo
de significados em processo de construção, o diferente deve ser excluído,
afastado, punido, uma vez que o que foge ao padrão não pode assistir a aula,
não pode sequer permanecer na escola. Logo, quando esta criança percebe alguém
ou algo em alguém que para ela, é diferente do padrão (o cabelo; uma roupa; a cor;
a forma do corpo; da fala; do olhar) esta criança irá de alguma forma reagir a
ameaça do diferente, excluindo e punindo o diferente "ruim".
Em outras palavras, a escola moderna
ensina diariamente a criança a praticar o "bullying". Vejamos então a
ineficiência das políticas de combate à violência, à discriminação, à corrupção
que padecem, todas, deste mal. No exemplo descrito acima, a escola, o estado,
os governos, criam políticas públicas pontuais de combate ao
"bullying" (a tortura mental e agressão física decorrente da
discriminação do "diferente") ao mesmo tempo que mantém uma estrutura
simbólica que ensina a discriminação (o "bullying").
Voltamos aos conceitos de violência:
toda política de combate à violência; às drogas; à corrupção, serão sempre
ineficazes se não transformarem as estruturas sociais e econômicas que
permanentemente criam as condições para que esta violência subjetiva se
reproduza, assim como o sistema simbólico que continua, da mesma forma,
reproduzindo a violência. Para acabar com a violência subjetiva só há uma
maneira: acabar com a violência simbólica e objetiva. Para acabar com o
"bulling" na escola só mudando as estruturas uniformizadoras e
excludentes presentes permanentemente na escola; para acabar com a corrupção só
transformando o sistema social e econômico e de valores (condições objetivas e
simbólicas) que reproduzem as condições para que esta (a corrupção) se torne
parte da estrutura social e econômica vigente.
De nada adiantarão as constantes
políticas pontuais de combate a corrupção, se estas políticas atacarem apenas
os efeitos de forma repressiva e (ainda pior) com o direito penal, o aumento do
controle e da punição. Os resultados serão enganosos, sempre, se não
respondermos algumas perguntas: porque a corrupção? Quais são os elementos
estruturais e simbólicos em nossa sociedade que reproduzem as condições para a
corrupção?
De nada adiantarão partidos
políticos e políticas moralistas de critica à corrupção se estes partidos e os
seus políticos não compreendem as causas estruturais e simbólicas da corrupção.
Só há uma forma de eliminar a corrupção da política e livrar a sociedade dos
políticos corruptos como buscam estes partidos moralistas (como se nesta
sociedade e entre os seus cidadãos também não ocorresse corrupção):
desconstruindo a sociedade, economia e política estruturalmente e
simbolicamente corruptas e construindo algo novo, tarefa que parece fora do
alcance dos inocentes discursos moralistas.
______________________
1.
ZIZEK, Slavoj. Sobre la violencia: seis reflexiones
marginales, editora Paidós, Buenos Aires, 2009.
2.
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do estado -
nota sobre aparelhos ideológicos do estado, Biblioteca de Ciências Sociais,
editora Graal, 9 edição, Rio de Janeiro, 1985.
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