SUBMISSÕES, PERMISSÕES E PACTOS: DAS
"DEMOCRACIAS" LIBERAIS, DITADURAS E TOTALITARISMOS À POSSIBILIDADE DE
PACTOS DEMOCRÁTICOS NÃO HEGEMÔNICOS.
por José Luiz Quadros de
Magalhães
Começamos nossas reflexões com Zizek, que por sua vez nos traz Jean-Claude
Milner:
"Jean-Claude Milner sabe muito bem que o establishment conseguiu
desfazer todas as consequências ameaçadoras de 1968 pela incorporação do
chamado 'espírito de 68', voltando-o, assim, contra o verdadeiro âmago da
revolta. As exigências de novos direitos (que causariam uma verdadeira
redistribuição de poder) foram atendidas, mas apenas à guisa de 'permissões' -
a 'sociedade permissiva' é exatamente aquela que amplia o alcance do que os
sujeitos têm permissão de fazer sem, na verdade, lhes dar poder adicional.
(...) É o que acontece como direito ao divorcio, ao aborto, ao casamento gay e
assim por diante; são todos permissões mascaradas de direitos; não
mudam em nada a distribuição de poder."
Zizek cita Jean-Claude Milner[1]:
"Os
que detém o poder conhecem muito bem a diferença entre direito e permissão.
Talvez não saibam articular em conceitos, mas a prática esclareceu muito. Um
direito, em sentido estrito, significa o acesso ao exercício de um poder em
detrimento de outro poder. Uma permissão não diminui o poder, em detrimento de
outro poder. Uma permissão não diminui o poder de quem outorga; não aumenta o
poder daquele que obtém a permissão. Torna a vida mais fácil, o que não é pouco
coisa"[2]
A partir destas ideias podemos refletir sobre o "sucesso" (depende
para quem) da democracia liberal representativa e as operações constantes que
este sistema tem feito de conversão de direitos, frutos de lutas, em permissões
que esvaziam e desmobilizam estas lutas por poder, em uma acomodação,
decorrente de uma aparente vitória pelo recebimento de permissões para atuar,
fazer e até mesmo ser feliz, desde que não se perturbe aqueles que exercem o
poder naquilo que lhes é essencial: a manutenção do poder em suas vertentes
econômica, cultural, militar e especialmente ideológica (que se conecta e
sustenta as outras vertentes).
O capitalismo tem sido capaz de, até o momento, resignificar os símbolos e
discursos de rebeldia e luta em consumo. Assim o movimento Hippie e Punk foi
limitado aos símbolos de rebeldia controlados, onde as calças rasgadas já vem
rasgadas de fábrica e os cabelos são pintados com tintas facilmente removíveis;
Che Guevara é vendido na Champs Elisée e os pichadores e grafiteiros expõem no
Museu de Arte de São Paulo. Tudo é incorporado, domado e pasteurizado. A
"diversidade" está em uma praça de alimentação de Shopping Center ou
no Epcot Center, onde é possível comer comidas de diversos lugares do mundo com
um sabor e tempero adaptados ao nosso paladar. Da mesma forma funciona a
democracia parlamentar (democracia liberal ou liberal social representativa e
majoritária). As opções são limitadas, e os partidos políticos, da esquerda
"radical" a direita "democrática", se parecem com a
diversidade de comidas com tempero parecido dos Shopping Centers. Escolher
entre esquerda e direita, especialmente nas "democracias"
"ocidentais" da Europa e EUA (ou Canadá e Austrália) dá no mesmo.
Muda o marketing, as caras e as roupas, muda a embalagem, mas o conteúdo é
muito semelhante.
Este aparato "democrático" representativo, parlamentar e partidário,
processa permanentemente as insatisfações, lutas, reivindicações, como uma
grande maquina de empacotar alimentos ou enlatar peixes e feijoadas. Esta
absorção das revindicações de poder democrático transformando-as em permissões
bondosas do poder "democrático" representativo desmobiliza e perpetua
as desigualdades e violências inerentes á modernidade e, logo, ao capitalismo,
sua principal criação.
As democracias liberais (sociais) representativas majoritárias se transformaram
em processadores de revindicações, esvaziando o poder popular. Os direitos, a
conquista do poder pelo povo se transformou em permissões de
"jouissance"[3]. Aquele bife a milanesa especial (assim
como o pão de queijo), diferente, delicioso feito em casa, com o sabor único da
vovó, agora é industrializado: nós não mais fazemos, mas podemos comer a hora
que quisermos. Igual o suco de laranja caseiro, industrializado, que vem com "gominhos"
e com carinho, de "verdade".
O problema da "jouissance" é que ela se tornou obrigatória na cultura
consumista contemporânea (que é também moderna). Se posso aproveitar de alguma
coisa, experimento isto como uma obrigação de não perder a oportunidade. Daí
tanta depressão em uma sociedade fundada no gozo, no prazer e no consumo: uma
sociedade do desespero.
A diferença entre conquistar um direito e uma permissão ocorre nas relações de
poder e não, necessariamente, na existência ou não de determinados processos
formais institucionalizados. Em outras palavras, a democracia representativa
pode ser meio de conquista de poder e de direitos, e isto os exemplos da
América do Sul têm nos demonstrado. As transformações constitucionais na
Venezuela, Equador e Bolívia, têm representado ganho de poder para aqueles que
foram historicamente alijados deste durante séculos. A questão essencial que
ocorre nas democracias liberais representativas (e os países acima citados não
se enquadram mais neste conceito), é, em que medida, a luta por direitos
resulta em ganho de poder, ou, ao contrário, como tem ocorrido com muita
frequência, em ganho do direito de aproveitar, usufruir, sem efetivamente uma
transferência de poder de quem concede, permite, para quem é o permitido e
concedido. Uma coisa é a pessoa poder usufruir de uma permissão de exercício de
um direito. O poder continua com quem permite. Outra coisa é conquistar este
direito para si, o que implica que quem detinha este poder de conceder ou não,
não mais o detém. Trata-se neste caso de uma mudança de mãos do poder. O que
podemos perceber, e precisamos ter atenção, é para o fato de que, a recente e
precária "democracia" representativa, pode ser precária enquanto
instrumento efetivamente de democracia, mas cumpre muito bem, com efetividade e
competência a sua função de manter o poder nas mãos de sempre, ou, em outras
palavras, mudar para manter as coisas como estão.
Percebendo que esta, já precária democracia, é apenas tolerada para quem detém
o poder moderno, são comuns as rupturas. Toda vez que está democracia serve
como canal de conquista de poder daqueles que não tinham, assistimos uma
ruptura, muito comum: Brasil (1964 e as várias e constantes tentativas de
golpes e pequenos golpes diários); Chile (1973); as ditaduras da Argentina e
Uruguai na década de 1970; a tentativa de golpe contra Hugo Chaves em 2001; o
golpe em Honduras e em 2012 e o golpe parlamentar no Paraguai, são exemplos.
Assim, após o constitucionalismo liberal não democrático, a conquista da
democracia representativa vem acompanhada dos constantes golpes que geram ditaduras
e totalitarismo.
A relação de poder nestas duas formas alternativas de manutenção de poder no
estado moderno ocorrem de formas distintas. Enquanto o poder nas democracias
liberais sociais representativas permanece nas mesmas mãos por meio de
permissões, nas ditaduras e totalitarismos ocorre uma submissão que funciona em
forma de concessões ou permissões paternalistas atendendo aos pedidos do povo
infantilizado (nas ditaduras) ou da total submissão ideológica, no
totalitarismo, onde o poder concede, mesmo não havendo possibilidade do pedido.
No totalitarismo o poder, além de criar o que os submetidos vão desejar, ele
responde quando quer, sem pedido, àquela demanda que este poder criou no
sujeito (subjetivado pelo poder).
Portanto temos nestas duas estruturas de poder, formas de submissão agressivas.
A primeira, um ditador paternalista pode ou não atender aos pedidos aceitáveis,
punindo os pedidos inaceitáveis. Esta submissão se funda em relações de amor e
ódio à figura do poder encarnada no líder. O totalitarismo é mais sofisticado:
o poder atende às demandas ocultas do povo, que são direcionadas aos interesses
daqueles que efetivamente detém o poder. Neste estado o poder é total e age
todo o tempo. Não há concessões dialógicas ou racionais. O poder é real,
brutal, mas age a partir das demandas ocultas do povo, que são manipuladas.
Diferente de submissões (ditaduras e totalitarismos) e de permissões
("democracia" representativa majoritária), um espaço de conquista de
direitos não hegemônico significa que o poder é dividido, compartilhado.
Trata-se da construção de um espaço comum, onde o direito comum é construído
por meio da construção de consensos, sempre provisórios, nunca hegemônicos e
raramente majoritário (o que acontece na Bolívia, no Estado Plurinacional).
[1] Jean-Claude Milner, L'arrogance du présent: reards sur une
décennie, 1965-1975 (Paris, Grasset, 2009), p.233.
[2] Esta
tradução não é a mesma constante do livro de Slavoj Zizek (Primeiro como
tragédia, depois como farsa; editora Boitempo, São Paulo, pag. 58) mas é feita
pelo autor a partir do texto de Jean-Claude Milner no livro "La arrogancia
del presente - miradas sobre una década: 1965-1975, 1 ed., Buenos Aires,
Manantial, 2010.
[3] No
sentido de aproveitar de um direito; aproveitar um prazer de forma continua.
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