A sociedade do melhor – a
competição permanente e o fim da solidariedade
por José Luiz Quadros de Magalhães
Desaprendemos
a conviver com a diferença. Na sociedade de consumo contemporânea somos levados
a sempre escolher “o melhor”. Nos programas de televisão não se escuta
simplesmente uma musica. Este prazer de ouvir uma musica vem acompanhada quase
sempre com a escolha do melhor cantor, a melhor musica, o melhor calouro. A
competição é alimentada em todo momento, em todas as atividades. Na escola é
escolhido o melhor aluno, a melhor composição, a melhor monografia, a melhor nota
em cada matéria. Esta competição permanente nos leva inconscientemente a
reprodução da lógica do melhor em quase tudo: quem é o nosso melhor amigo? Qual
a melhor pizza da cidade? Qual o melhor churrasco? E o melhor tempero? A melhor
cerveja, o melhor escritor, o melhor livro, o melhor argumento, o melhor
candidato, o melhor professor, o melhor samba enredo e a melhor escola de
samba, o melhor...
Não é
necessário mencionar que o que é melhor para um não o é para o outro e é essa
impossibilidade momentânea de construir um consenso sobre o que é melhor que
ainda nos salva do totalitarismo. O problema será o dia quando todos acordarem
sobre o que é o melhor.
Uma
sociedade que sempre escolhe o melhor corre o risco de no final ficar com uma
única pizza, um único estilo de musica, uma única cerveja, um único argumento e
etc. A diversidade é muito rica e se construímos uma sociedade onde só há
espaço para os melhores negamos a diferença, a diversidade e nos submetemos ao
conceito majoritário (minoritário) do que é melhor. Porque tem que ter sempre o
melhor? Podemos comer uma pizza hoje e outra amanhã, ou ouvir uma musica hoje e
outra amanhã. Se sempre escolhemos o melhor escolhemos um vencedor, o que faz
do outro perdedor, categoria que desqualifica e tende a excluir. O diferente,
perdedor, desta sociedade do numero 1 tende a desaparecer, ou no mínimo ser
esquecido.
Este
ensaio se publicado em uma revista “cientifica” fiscalizada, controlada,
padronizada, limitada pela qualificação oficial, onde poucos dizem para muitos
o que é bom e correto, o que é cientifico, tem que se conformar aos padrões do
que é melhor. Tem que ter uma introdução, um desenvolvimento, e uma conclusão.
Em muitas publicações exige-se um resumo, um abstract, palavras chave,
bibliografia, seguir as regras da ABNT, ser escrito em “Times New Roman”,
alguns centímetros acima, outros abaixo, alguns do lado outros do outro lado,
citar outros autores e repetir o que eles disseram, etc, etc, etc... E se não
citar um monte de autores considerados os melhores pensadores, aí acabou tudo.
Não vale nada.
Já que é
para citar, o filosofo Jean Claude Milner em entrevista ao Le Monde (Le Monde
des livres, 28.02.2008, mis a jour le 06.03.08) se pergunta: Quando vamos parar
de nos fixarmos na finalidade de dizer bem o que já foi dito?
Por este
exemplo, é possível notar a superficialidade, a limitação, o aprisionamento do
pensamento, e como nos obrigam, por meio de um consenso minoritário, diante do
qual a maioria se cala, a nos enquadrarmos às regras criadas para padronizar
crianças e adolescentes ensinando-as a pensarem com “lógica”. O império da
forma sobre o conteúdo e o livre pensar. Esta é um exemplo de como a escolha do
melhor, no caso da melhor publicação, pode impedir que tenhamos acesso ao novo,
ao livre, ao diferente.
A
história do pensamento científico tem nos mostrado nos últimos séculos que uma
ideia, uma teoria que se tornará majoritária, nasce minoritária, e quando se
torna amplamente aceita como sendo a melhor é porque já está no momento de ser
superada. Podemos citar muitos exemplos conhecidos como Galileu, Newton, Kant,
Marx, Freud e muitos outros. Não estamos afirmando que a maioria é burra (a
unanimidade com certeza é irrefletida), mas a maioria nunca esteve na vanguarda
de nada. As novas teorias, as novas ideias filosóficas, políticas, econômicas
têm que envelhecer para serem compreendidas e aceitas, o que significa que já
estão no momento de renovação, de superação ou transformação.
Uma
sociedade que aprende a conviver com a diversidade, com a incerteza, com a
pluralidade pode fazer com que estes processos de transformação sejam menos
dolorosos, tenham um custo social e pessoal menor. As pessoas não deveriam ter
que morrer ou serem condenadas ao isolamento para que as coisas mudem.
Ao
contrário, uma sociedade que vive sempre em torno da ideia de escolha do melhor
corre o risco de se tornar monocromática, monótona, lenta e conservadora.
Voltemos
à ideia do que é melhor? Quando uma ideia política se torna hegemônica como o
liberalismo hoje ou o nazismo na Alemanha de 1933, significa que esta ideia
vitoriosa é a melhor? Os seus argumentos foram capazes de convencer e envolver
milhões. Como? Por quê? Efetivamente porque foram percebidos como sendo os
melhores. O importante é entender como ocorreu esta percepção do que é melhor.
Os consensos ou as maiorias históricas são construídos sobre verdades reveladas
ou sobre encobrimentos estratégicos? É possível imaginar que nas sociedades
complexas contemporâneas o jogo político é construído sobre uma honestidade de
intenções? A questão não é esta embora a pergunta continue pertinente. O
problema reside no fato de que as condições de percepção do mundo, das ideias,
das pessoas, são variadas, diversas, são mundos de percepção distintos
reforçados pelas grandes metrópoles, pela sociedade cosmopolita dos grandes
centros urbanos. A massificação, a busca da homogeneidade como forma de
construção de consensos tem repercussões perigosamente totalitárias como a
hegemonia irrefletida, fundada no desejo, da sociedade de consumo neoliberal
contemporânea.
Slavoj
Zizek nos traz uma importante reflexão sobre esta questão. Visitando Freud e o
livro dos sonhos o pensador nos mostra que o processo de construção de maiorias
políticas pode ter em diversos momentos históricos (inclusive na hegemonia
neoliberal atual) um perturbador e sofisticado processo ideológico de distorção
do real com conseqüências poderosas.
Zizek nos
mostra por meio de um diálogo com Freud, que os sonhos são manifestações,
muitas vezes, de medos e desejos presentes em uma estória que reflete
experiências diárias que muitas vezes não têm relação direta com o desejo e o
medo que se esconde ali. Em outras palavras, nós construímos uma estória na
qual estão presentes os nossos medos e desejos, que se escondem naquele desenrolar
de fatos, criados muitas vezes em uma estória que se perde no seu
desenvolvimento. Para encontrar estes desejos e medos é necessário encontrá-los
escondidos nas entrelinhas desta estória. A grande pista são os pensamentos
latentes, recorrentes, que se apresentam em estórias diversas.
Trazendo
isto para a política, podemos exemplificar, como faz Zizek, com o nazismo: a
sociedade alemã vivia o desemprego, a violência, o caos e a humilhação, o
Partido Nacional Socialista Operário Alemão (que não era nem socialista nem
operário) construiu uma estória na qual cabiam os medos e desejos daquela
sociedade naquele momento. Como fazer milhões de pessoas seguirem suas ideias?
Criando uma estória onde os desejos e medos de milhões de alemães estejam
presentes. Esta estória terá então o condão de levar as pessoas, na busca da
realização de seus desejos e superação de seus medos, na direção dos interesses
de quem criou a estória. Nesta estória o estrangeiro, o judeu é responsável
pelo desemprego; o operário é tão alemão quanto o empresário e o inimigo
responsável pelo desemprego e insegurança são as potências estrangeiras. Mesmo
sendo falsa a estória, a crença na estória construída, mostra que a solução dos
problemas que os afligem está na expulsão dos estrangeiros e especialmente os
judeus. A estória contada repetidas vezes legitima ações que em nada podem
efetivamente solucionar os seus medos e satisfazer os seus desejos, mas o
importante é que a maioria acredite nisto. Enquanto milhões se mobilizam
em torno desta estória, aqueles que detém o poder realizam os seus desejos e se
protegem dos seus medos. Transferindo para a contemporaneidade brasileira, a
construção da estória hoje hegemônica na imprensa conservadora, é a de que
podemos resolver o problema da insegurança nas grandes cidades com mais
polícia, mais direito penal, com o encarceramento em massa, criando personagens
que fogem da noção de humanidade, como o bandido, o monstro violento, o menor
infrator e outras nomeações simplificadoras. Toda uma política estatal é
justificada e defendida pela maioria, que é incapaz de perceber que está agindo
contra seus próprios interesses. Esta construção de estórias pode ajudar a
explicar porque milhões de pessoas agem contra seus próprios interesses,
repetidas vezes na história da humanidade: é uma minoria que constrói as
estórias que absorvem desejos e medos de uma maioria, direcionando estes para
outras finalidades que correspondem obviamente aos interesses desta minoria.
Este jogo
de construções de “verdades” ideologizadas, distorcidas, faz com que a
percepção do melhor seja comprometida pela vontade de poucos.
Como
dito, o grupo que assume o poder do Estado (e não só o poder do Estado mas o
poder econômico) cria uma estória para coordenar. Invade este espaço pessoal de
construção de sentidos, de coordenadas, e impõe suas próprias coordenadas.
Zizek se refere ao totalitarismo nazista desta forma. Este poder toma os medos
e desejos da população e dá um sentido, constrói uma estória. Para isto Zizek
usa o exemplo de Freud no livro dos sonhos: os recalques estão contidos em uma
estória, um sentido que nossos sonhos criam. Para descobrir estes recalques é
necessário encontrá-los em meio à estória e isto se faz por meio da
identificação dos pensamentos recorrentes (latentes). A estória não tem relação
direta com os recalques ali escondidos.
Nas
palavras de Zizek, quando este se pergunta por qual razão as ideias dominantes
não são as ideias dos dominantes: “... cada universalidade hegemônica deve
incorporar ao menos dois componentes particulares, o componente popular
‘autêntico’ e sua ‘distorção’ do fato das relações de dominação e exploração.”
(Pladoyer en faveur de l’intolerence”, editions Climats, Castelnau le Lez,
2004, page 25)
Zizek
observa que o fascismo manipula os autênticos desejos populares de busca de
comunidade e de solidariedade social contra a competição feroz e a exploração
deformando a expressão deste desejo com a finalidade de legitimar a perpetuação
das relações de dominação e de exploração social. Logo, a hegemonia ideológica,
não se constitui onde um componente particular ocupa o vácuo de um universal
vazio, mas sim, antes, a universalidade ideológica testemunha a luta entre ao
menos dois componentes particulares: o popular exprimindo os desejos secretos
da maioria dominada e o específico exprimindo os interesses das forças de
dominação.
Zizek
menciona como exemplo o cinema demonstrando como este pode despertar um desejo
e ao mesmo tempo nos dizer como desejar. É tudo que o poder dominante quer: não
só dar um sentido, construir coordenadas a partir dos desejos existentes, mas
também criar desejos e dizer como desejar. O que o nazismo fez foi oferecer uma
estória, dar um sentido que atende aos interesses da classe dominante aos
desejos inconscientes das pessoas.
Retomando
Freud, Zizek explica que há uma distinção entre pensamentos “latentes” do sonho
e o desejo inconsciente expresso em um sonho. É fundamental diferenciar a
estória do sonho, o seu texto explícito, dos pensamentos latentes manifestados
nesta estória.
De uma
maneira semelhante não há nada de fascista ou de reacionário no pensamento
latente (do sonho) da ideologia fascista, no desejo de comunidade e na
solidariedade social. O que explica o caráter propriamente fascista da
ideologia é a maneira como este pensamento latente é transformado e elaborado
pelo (trabalho do sonho) texto ideológico explícito que procura legitimar as
relações sociais de dominação e exploração. O mesmo pode ser aplicado ao
populismo direitista de Sarkozy ou Berlusconi ou o neoliberalismo dos anos 90
até hoje, ou o ultra-conservadorismo de Bush, etc, etc...
Segundo
Zizek, todos nós construímos para nós, coordenadas, sinais, caminhos asfaltados
e bem sinalizados nos quais podemos caminhar com a necessária ilusão de
segurança. Nestas coordenadas estão as pessoas que nos cercam, que constituem
nossos referenciais de nós mesmos, está o trabalho, a escola, a cidade e uma
rotina que nos oferece uma sensação de segurança que se encontra na ilusão e
nas estórias que construímos para nós mesmos. O real cru e inesperado pode
romper com estas coordenadas, nos deixando sem direção, sem placa de
sinalização, sem estrada.
Um
acontecimento radical e inesperado que elimine referenciais de coordenadas pode
nos deixar sem estrada, sem fantasias e sem direção. Zizek exemplifica com o
filme “A liberdade é azul” da trilogia de Kristof Kielowsky (o diretor polonês)
para exemplificar esta situação. Quando a pessoa representada por Juliette
Binoche perde seu marido e filho em um acidente de automóvel, todo o
referencial, todas as coordenadas de mundo, de vida e todo o referencial de si
mesmo se perdem. O filme fala da reconstrução destes referenciais.
Se
precisamos da fantasia para nos aproximar do real quando o real se apresenta
totalmente inesperado, quando nos tira as coordenadas, perdemos também,
temporariamente a capacidade de fantasiar.
A
sociedade da fantasia
Se a
fantasia é um precioso instrumento para nos aproximarmos do real com cautela e
um pouco de segurança, precisamos da fantasia. O sexo sem fantasia seria uma
experiência animal, se é que é possível ou existe para nós sexo sem fantasia,
uma vez que o sexo animal é uma experiência fantasiada. Ora, se precisamos da
fantasia, se a fantasia nos ajuda a viver com as dificuldades do real, se a
fantasia nos dá prazer, por que não criar uma sociedade da fantasia permanente,
da promessa do prazer permanente, para todos, ou quase todos: esta é a
sociedade de consumo, que ao prometer prazer permanente leva ao desespero.
A
sociedade de consumo aposta no prazer permanente, na busca deste prazer. Nesta
sociedade, ter prazer a maior parte do tempo é uma promessa, é um direito que
se ameaçado leva as mais ferozes reações. Este direito de prazer permanente é
um direito individual, que se insere na esfera privada e se coloca em uma
relação de concorrência com o outro. A busca ansiosa por consumir tudo e todos,
por sentir os prazeres disponíveis transforma este direito como um direito além
da sociedade: este direito não encontra limites no direito do outro, não existe
esta percepção, É um direito que se encontra em um espaço superior a qualquer
direito constitucional, universal, e não se enquadra em nenhuma categoria
conhecida: é um direito além do natural. Ele se fundamenta no gozo e está além
do controle daquele que o possui. Ele ameaça o seu possuidor. Em nome deste
“direito”, fora da sociedade, caminhamos de forma acelerada em direção ao
extermínio. Possuir um automóvel, um novo celular a cada mês, experimentar
sensações diversas justifica qualquer preço que se tenha que pagar. É um
direito sagrado, retirado do livre uso de quem o possui, pois este se torna
escravo do seu próprio desejo, e de seu próprio prazer. Assim caminhamos
aceleradamente explorando os minérios, o petróleo e qualquer outro recurso que
se mostre necessário para as realizações de nosso prazer.
Não é
correto eu não poder dirigir meu carro porque ele polui. Cada um pode ter seu
automóvel mesmo que as cidades não comportem mais. Os governantes que encontrem
soluções para o transito, sem que isto implique em aumento de tributos.
A
completa irracionalidade, a destruição de qualquer lógica na busca sem freios
pelo “crescimento”, pelo “desenvolvimento” movimenta de forma frenética o
planeta, onde executivos que não param, viajam o mundo inteiro sem conhecer
nada além de suas certezas, sem perceber nada além do que seus valores
protegidos pelos cofres de um banco global, “humanizado” e “ecologicamente
correto”.
O império
da forma, do discurso fora de lugar, das justificativas rasas, tudo para
continuarmos a busca do prazer a cada momento. A completa falta de liberdade na
impossibilidade de dizermos não para nós mesmos. A impossibilidade de escolher
algo que não seja imposto pelos nossos sentidos. O prazer visual, auditivo, o
paladar explorado até a ultima gota, o tato de um corpo perfeito, na
superficialidade de um prazer que se consome a cada instante.
Neste
império dos sentidos, os sentimentos profundos, elaborados, demorados, não
interessam, não temos tempo a perder. Nas palavras de Zigmunt Bauman, tudo se
torna liquido. Tudo vem e vai com uma fluidez silenciosa, doce, quase
imperceptível... superficial.
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