VIOLÊNCIA E MODERNIDADE: O DISPOSITIVO DE NARCISO
A superação da modernidade na construção de um novo sistema mundo.
José Luiz Quadros de Magalhães
Palavras-chave: modernidade; internacionalização; nova ordem.
Resumo:
o artigo procura entender a modernidade, seu processo de construção com
a hegemonia européia e a homogeinização cultural que permitiu a
globalização do capitalismo. Partindo da explicação da formação do
estado moderno os autores explicam os processos de exclusão e construção
de hegemonias demonstrando ao final a necessidade de ruptura com o
paradigma moderno para que seja possível o desenvolvimento de uma nova
ordem internacional e um novo direito internacional.
Introdução
Uma das causas centrais da violência na contemporaneidade é a negação da diferença. O não reconhecimento do outro como pessoa.
Neste
texto procuramos demonstrar como a modernidade, inventada a partir do
final do século XV, necessita padronizar, igualar os menos diferentes e
excluir os mais diferentes (o outro), no processo de construção da
identidade nacional, e como esta rejeição, rebaixamento ou encobrimento
do outro está na base de várias formas de violência típicas da
modernidade. Mais, queremos demonstrar que este processo narcisista de
construção da nacionalidade sobre o outro, sobre a diferenciação e
exclusão do outro é um dispositivo mental da cultura moderna ocidental
que pode ser acionado diante de situações complexas em momentos
distintos da história. Finalmente, queremos apontar o estado
plurinacional que se constrói na Bolívia e Equador, como efetiva
alternativa para a superação do estado moderno e como base lógica
estrutural de um novo sistema mundo.
A
identidade nacional é fundamental para a centralização do poder e para a
construção das instituições modernas, que nos acompanham até hoje, sem
as quais o capitalismo teria sido impossível: o poder central; os
exércitos nacionais; a moeda nacional; os bancos nacionais; o direito
nacional uniformizador, especialmente o direito de família, de sucessões
e de propriedade; a polícia nacional; as policias secretas e a
burocracia estatal; as escolas uniformizadas e uniformizadoras.
Não
podemos nos esquecer que para a construção destas instituições e para a
criação deste nacional, nada teria sido possível sem a religião
nacional. A religião é um mecanismo essencial para a uniformização de
comportamentos e logo de valores, uma vez que pode estar presente em
todos os espaços da vida, públicos e privados. Daí que, mesmo que
formalmente, muitos estados tenham se tornado laicos no decorrer deste
processo moderno, esta separação da religião é muito mais formal do que
efetiva. A religião continua importante nos debates políticos e nas
justificativas de decisões no plano das relações internacionais. O
discurso religioso, por exemplo, tem sido recorrente para justificar ou
amparar as intervenções norte-americanas em diversos países.
A
construção da identidade nacional (fundamental para o Estado nacional e
logo para o capitalismo em todas as suas formas) necessita do
estranhamento do outro, da exclusão do não nacional, da exclusão e do
rebaixamento do diferente. A construção da nacionalidade é um projeto
narcisista.
Este dispositivo de
estranhamento, de exclusão, de autoafirmação pelo rebaixamento do outro
está presente em todos nós, frutos da modernidade agora naturalizada:
existe um “Eichman” dentro de cada um nós. Este “Eichman” está desperto
em alguns, controlado ou acorrentado em outros, ou simplesmente
adormecido, podendo ser despertado em momentos históricos que reúnam as
condições para tal. Os genocídios podem ser explicados pelo despertar
deste “Eichman”, deste dispositivo interno moderno de afirmação perante o
rebaixamento do outro. Alemanha; Iugoslávia e Ruanda são exemplos de
genocídios do século XX onde o dispositivo foi acionado por condições
históricas complexas.
1. A modernidade: origens
1.1- 1492: invasão e expulsão
O
ano de 1492 é de uma significação especial para o projeto moderno.
Neste ano dois fatos marcam o inicio do processo de construção do mundo
moderno como conhecemos hoje.
a) A invasão:
Em
1492 Cristovão Colombo começa a invasão das Américas (nome dado pelos
invasores europeus). Chegando nestas terras começa o processo de
extermínio, assassínio, torturas e o encobrimento que durou mais de
quinhentos anos até os movimentos indígenas assumirem o poder na
Bolívia, e se organizarem e conquistarem espaços e direitos em outros
estados americanos.
A invasão do
mundo, começando pela América é fundamental para o desenvolvimento do
sistema econômico criado pelos europeus: o capitalismo. Não haveria
capitalismo e o poderoso processo de industrialização da Europa
(incluindo EUA mais tarde) sem as riquezas retiradas das Américas (ouro,
cobre, prata, madeira, e diversas outras riquezas do subsolo, solo e
supersolo) inicialmente, assim como as riquezas da Ásia e África. Não
haveria tampouco capitalismo sem as instituições modernas: a moeda
nacional; os bancos nacionais; os exércitos nacionais (para invadir e
retirar as riquezas dos outros); a polícia nacional (especialmente para
vigiar e punir os excluídos do sistema sócio-econômico) ; o direito
nacional e a religião nacional como mecanismos de uniformização de
valores construindo uma massa uniformizada que se transformará nos
consumidores de hoje (que devem gostar das mesmas coisas, especialmente
automóveis e marcas de diversos produtos). Neste momento de globalização
moderna, o mercado global cria padrões de comportamentos e valores
uniformizados em escala global, fundamental para o sucesso do
capitalismo global. Parcelas cada vez maiores de pessoas são convertidas
ao credo do capitalismo: o individualismo e a competição permanente. Os
cidadãos são convertidos em consumidores. Uma nova subjetividade é
construída em escala global onde comportamentos e valores construídos
por complexas relações sociais e econômicas históricas são
naturalizados. O ser humano consumidor, egoísta e competitivo,
construído pela modernidade, é naturalizado . Em outras palavras isto
significa que as pessoas passam a perceber estes valores e
comportamentos como se fossem naturais no ser humano, o que obviamente
não é.
A completa invasão e
dominação militar do mundo será seguida da dominação ideológica. A
Europa será mostrada para todos como o padrão a ser seguido. É posta
como a civilização mais avançada, mais bem acabada e, portanto, destino
natural de todos que conseguirem evoluir. Está naturalização histórica
coloca outras civilizações, com compreensões e graus de complexidade
distintas, não como sendo diferentes mas como sendo menos evoluídas.
Este mecanismo de compreensão histórica influencia na construção de um
conhecimento europeu com pretensão de validade universal. O que é
europeu é universal, a única filosofia existente é a européia. As outras
formas de compreensão do mundo e da vida são conhecimentos primitivos
não complexos ou com menor grau de complexidade, sem posição científica .
Uma outra filosofia não existe, sendo admitida, no máximo, por alguns,
uma filosofia étnica (uma etno-filosofia) em outros espaços do globo que
não a Europa. Esta perspectiva é reproduzida até hoje em muitas
Universidades e Faculdades de Filosofia do centro e das periferias do
Planeta.
Na invasão da “América”
o dispositivo moderno se manifesta pela primeira vez na sua
radicalidade: o não reconhecimento do outro como pessoa; o não
reconhecimento no outro; a lógica nós x eles. No momento onde começa a
construção de uma identidade européia, espanhola e cristã sobre o outro
diferente, não compreendido, menos gente, menos humano ou não humano.
Milhões de pessoas, habitantes originários desta terra que passará a ser
chamada de “América” são assassinados, escravizados e torturados.
Importante lembrar como funciona o dispositivo narcisista de construção
da identidade nacional: “sou nacional, sou europeu e espanhol porque sou
católico, porque compartilho uma identidade fundada em valores comuns,
em uma moral e uma ética compartilhada pelos nacionais iguais a mim. Sou
nacional, sou europeu e espanhol porque sou mais do que o outro
diferente, o selvagem indígena, o africano que não é humano ou o outro
árabe, muçulmano ou judeu.
Muito
ilustrativo deste momento de construção de identidade é o debate entre o
Frei Bartolomeu de las Casas e o professor Juan Gines de Sepulveda .
Las Casas, horrorizado com as brutalidades cometidas pelo invasor
europeu nas Américas denuncia ao Papa e ao Rei, que acatam sua
reivindicação. Las Casas defendia que este outro (“eles”) era como
“nós”. Las Casas começava a desenvolver uma idéia de um grande “nós”: o
indígena, diferente, incompreendido era também pessoa, tinha alma como
“nós”. De forma diferente, Sepulveda, o construtor da estrutura
argumentativa que sobrevive até hoje no direito internacional, que
fundamenta as intervenções “humanitárias” e os bloqueios econômicos,
defendia a necessidade de intervir, mesmo com força, se necessário, para
impedir que “eles” os selvagens, continuassem cometendo sua
“selvageria”. Intervir violentamente para evangelizar, para impedir atos
selvagens que só aqueles selvagens cometiam. A estrutura argumentativa
que Sepulveda constrói continua hoje, mudando apenas as palavras: hoje
se intervém em nome dos direitos humanos e da democracia e não tanto em
nome da evangelização. As mortes decorrentes destas intervenções são,
entretanto, sempre muito maiores do que as mortes que poderiam ocorrer
se não houvesse intervenção nenhuma. Isto quando não se intervém para
evitar a catástrofe gerada por uma intervenção anterior. Um exemplo mais
contemporâneo foi a não intervenção que permitiu o genocídio em Ruanda
gerado por uma intervenção européia anterior. Por traz de toda
intervenção ou não intervenção existem sempre motivos inconfessáveis.
Voltando
ao século XVI, fazemos uma pergunta: porque o ocidente não tem espelho?
Porque o espanhol, português, inglês, holandês, francês, enfim, porque o
invasor europeu condenava as práticas bárbaras ou selvagens a partir de
um humanismo cristão e não era capaz de enxergar sua própria barbárie.
Primeiro devemos lembrar que o que fundamenta a lógica nós x eles, sobre
a qual se constrói a modernidade, é o “fato” de que “eles” não são
iguais a “nós”. “Eles” não têm alma ou são animalizados ou coisificados.
Segundo, existe sim um espelho, mas este espelho é um espelho de
narciso: mostra apenas o que queremos enxergar, ou seja, “nossa”
superioridade, “nossa” enorme beleza. Trata-se de um espelho que não
revela, mas, encobre. Este é um dispositivo perigoso, pois, quando
denunciamos a falta do espelho, quando afirmamos que este “nós” comete
as “selvagerias” ou “barbáries”, “nós” retruca mostrando o espelho de
narciso: “veja, não há nada de mal aqui”, ou ainda, “o mal que há não é
de nossa responsabilidade, a responsabilidade é deles que recebemos tão
bem em nossa terra”.
Em parte
isto pode ser explicado pela mesma necessidade de construção de uma
identidade nacional imaginada , idealizada, construída, mas
naturalizada. Assim para a “nossa” barbárie sempre existe uma
justificativa. Para a selvageria dos “outros” (”eles”) não há
justificativa pelo simples fato de não entendermos “eles” ou
simplesmente, não enxergarmos eles como pessoas como nós. O europeu que
invadia estas terras não compreendia as ações e organizações sociais dos
povos originários e logo, para eles, não existiam as explicações que
foram cuidadosamente construídas para suas ações na sua sociedade
civilizada. Há justificativas para “minha” violência e não há
justificativas para a violência do “outro”. Até hoje.
b) A expulsão:
O
segundo fato de grande simbolismo para compreender o processo moderno
foi a queda de Granada em 1492, a ultima grande cidade em domínio
muçulmano. Trata-se da expulsão do outro, do mais diferente abrindo
agora espaço para a construção do Estado moderno com a uniformização dos
menos diferentes e a invenção do europeu e dos nacionais europeus.
Seguindo a expulsão dos muçulmanos vem a expulsão dos judeus e a
construção de Estados modernos uniformizados pela imposição de um única
religião que ditava comportamentos ao lado do Estado para todas as
esferas da vida de todas as pessoas. Quem não se enquadrasse estava
fora. Foi criada a polícia da nacionalidade: a Santa Inquisição.
A
uniformização de comportamento e valores é essencial para o
reconhecimento de um poder agora unificado e centralizado. Este é um
outro ponto importante: a lógica “nós” x “eles” será agora
meticulosamente sustentada por um aparato de instituições que se
encarregaram de construir e manter a identidade nacional. Esta
idealização, esta comunidade imaginada será construída e mantida pela
religião única do estado (primeiro passo); pelo exército e pela polícia
(normalizando e punindo os diferentes não normalizados); pelo direito
nacional (justificando e estabelecendo parâmetros de normalidade para a
ação da polícia e das forças armadas); as escolas (que passaram a
produzir pessoas nacionais em série) e a burocracia estatal com os
bancos nacionais, a administração pública e a moeda nacional. Todo este
aparato fundamental para o desenvolvimento do capitalismo sustentará o
projeto narcisista de identidade nacional. O direito, claro, cumpre um
papel fundamental principalmente o direito de família, de propriedade e
de sucessões.
Uma pergunta
importante: porque o Estado moderno necessita da uniformização do
comportamento, por meio da uniformização de valores promovida pelo
direito, pela religião, pela polícia, pelas armas e pela escola? Este
ponto é o núcleo da lógica moderna: o capitalismo e o poder do estado
necessitam desta uniformização. Primeiro, o estado moderno surge da
falência do sistema feudal, descentralizado, multi-étnico,
multi-linguístico, com a existência de esferas fragmentadas de poder. As
rebeliões dos servos no campo, contra os nobres feudais, o deslocamento
de muitos ex-servos para os burgos e as rebeliões nas cidades, ameaçam
os poderes de nobres e burgueses. Assim, nobres e burgueses se aproximam
do Rei fortalecendo o seu poder, financiando um exército unificado e a
construção de uma estrutura hierarquizada de poder que possa manter seus
privilégios. O estado moderno nasce de uma aliança entre o Rei, a
nobreza e a burguesia. A proteção desta estrutura do Estado aos
interesses burgueses permitirá então o desenvolvimento do capitalismo, o
enriquecimento da burguesia e sua posterior tomada de poder. Lembremos
que a aliança entre burguesia e nobreza não se rompeu. Até hoje as
monarquias parlamentares européias exemplificam o sucesso desta
parceria.
Este estado moderno
viabilizou o mundo uniforme e global de hoje. Os exércitos dos novos
estados europeus subjugaram o mundo, e da América (Estados Unidos
excluídos); África e Ásia extraíram as riquezas que financiaram suas
economias. Não há capitalismo sem guerra. Mesmo que alguns afirmem que
não há guerras entre estados com economias e democracia liberais, os
conflitos armados no mundo hoje matam mais que no passado embora neste
momento (segunda década do século XXI) não tenhamos guerras
convencionais entre estados nacionais. Os conflitos mudaram de nome,
novas práticas foram introduzidas, mas eles continuam sendo necessários
para a continuidade do processo de financiamento do capitalismo global, a
venda de armas, de medicamentos, drogas legais e ilegais, exércitos
privados, presídios privados, etc...
Voltando
ao século XVI, lembramos que o Estado moderno, para colocar ordem no
caos passa a unificar o poder, as armas e o direito. O Estado moderno
terá um único poder central que expressa agora uma única vontade. Vamos
entender a lógica da necessidade de uniformização: para que este novo
poder central tenha o seu poder reconhecido é necessário criar
identificações entre os súditos ou hoje, os cidadãos. O rei (o poder)
não pode mais se identificar apenas com o seu grupo identitário. Ele
precisa estar acima desta identidade local ou regional. Assim, na
Europa, após expulsar os mais diferentes (muçulmanos e judeus) sobre os
quais se construiria a identidade de narciso, era fundamental negar as
diferenças internas. Esta uniformização de comportamentos foi e continua
sendo necessária não só para o poder do Estado, como também para a
economia capitalista: é essencial que as pessoas gostem de consumir
objetos, marcas, carros, é fundamental que as pessoas sejam
individualistas, egoístas e competitivas para o sistema funcionar. Mais:
é fundamental que as pessoas acreditem que isto é natural nelas.
Assim
o Estado moderno na Europa se formou com a uniformização dos menos
diferentes (brancos e cristãos) e com a expulsão dos mais diferentes
(judeus e muçulmanos). Este processo ajuda-nos a compreender fenômenos
como o nazismo, o ultra-nacionalismo, o racismo, e, como até hoje,
mergulhados no mesmo paradigma moderno estes estados e ou os seus
nacionais continuem perseguindo, expulsando ou mesmo matando muçulmanos,
ciganos, judeus entre outros que ocupam o lugar “d’eles” em algum
momento da história.
1.2- O Estado moderno na Europa
Vamos fazer uma breve
retrospectiva histórica para organizarmos o que discutimos até aqui. A
formação do Estado moderno a partir do século XV ocorre após lutas
internas onde o poder do Rei se afirma perante os poderes dos senhores
feudais, unificando o poder interno, unificando os exércitos e a
economia, para então afirmar este mesmo poder perante os poderes
externos, os impérios e a Igreja. Trata-se de um poder unificador numa
esfera intermediária, pois cria um poder organizado e hierarquizado
internamente, sobre os conflitos regionais, as identidades existentes
anteriormente a formação do Reino e do Estado nacional que surge neste
momento e de outro lado se afirma perante o poder da Igreja e dos
Impérios. Este é o processo que ocorre em Portugal, Espanha, França e
Inglaterra.
Destes fatos
históricos decorre o surgimento do conceito de uma soberania em duplo
sentido: a soberania interna a partir da unificação do Reino sobre os
grupos de poder representados pelos nobres (senhores feudais), com a
adoção de um único exército subordinado a uma única vontade; a soberania
externa a partir da não submissão automática à vontade do papa e ao
poder imperial (multi-étnico e descentralizado).
Um
problema importante surge neste momento, fundamental para o
reconhecimento do poder do Estado, pelos súditos inicialmente, mas que
permanece para os cidadãos no futuro estado constitucional: para que o
poder do Rei (ou do Estado) seja reconhecido, este Rei não pode se
identificar particularmente com nenhum grupo étnico interno. Os diversos
grupos de identificação pré-existentes ao Estado nacional não podem
criar conflitos ou barreiras intransponíveis de comunicação, pois
ameaçarão a continuidade do reconhecimento do poder e do território
deste novo Estado soberano. Assim a construção de uma identidade
nacional se torna fundamental para o exercício do poder soberano.
Desta
forma, se o Rei pertence a uma região do Estado, que tem uma cultura
própria, identificações comuns com a qual ele claramente se identifica,
dificilmente um outro grupo, com outras identificações, reconhecerá o
seu poder. Assim, a tarefa principal deste novo Estado é criar uma
nacionalidade (conjunto de valores de identidade) por sobre as
identidades (ou podemos falar mesmo em nacionalidades) pré-existentes. A
unidade da Espanha ainda hoje está, entre outras razões, na capacidade
do poder do Estado em manter uma nacionalidade espanhola por sobre as
nacionalidades pré-existentes (galegos, bascos, catalães, andaluzes,
castelhanos, entre outros). O dia em que estas identidades regionais
prevalecerem sobre a identidade espanhola, os Estado espanhol estará
condenado à dissolução. Como exemplo recente, podemos citar a
fragmentação da Iugoslávia entre vários pequenos estados independentes
(estados étnicos) como a Macedônia, Sérvia, Croácia, Montenegro, Bósnia,
Eslovênia e em 2008 o impasse com Kosovo.
Portanto
a tarefa de construção do Estado nacional (do Estado moderno) dependia
da construção de uma identidade nacional, ou em outras palavras, da
imposição de valores comuns que deveriam ser compartilhados pelos
diversos grupos étnicos, pelos diversos grupos sociais para que assim
todos reconhecessem o poder do Estado, do soberano. Assim, na Espanha, o
rei castelhano agora era espanhol, e todos os grupos internos também
deveriam se sentir espanhóis, reconhecendo assim a autoridade do
soberano.
Este processo de
criação de uma nacionalidade dependia da imposição e aceitação pela
população, de valores comuns. Quais foram inicialmente estes valores? Um
inimigo comum (na Espanha do século XV os mouros, o império
estrangeiro), uma luta comum, um projeto comum, e naquele momento, o
fator fundamental unificador: uma religião comum. Assim a Espanha nasce
com a expulsão dos muçulmanos e posteriormente judeus. Ser espanhol era
ser católico e quem não se comportasse como um bom católico era
excluído.
A formação do Estado
moderno está, portanto, intimamente relacionado com a intolerância
religiosa, cultural, a negação da diversidade fora de determinados
padrões e limites. O Estado moderno nasce da intolerância com o
diferente, e dependia de políticas de intolerância para sua afirmação.
Até hoje assistimos o fundamental papel da religião nos conflitos
internacionais, a intolerância com o diferente. Mesmo estados que
constitucionalmente aceitam a condição de estados laicos têm na
religião, uma base forte de seu poder: o caso mais assustador é o dos
Estados Unidos, divididos entre evangélicos fundamentalistas de um lado e
protestantes liberais de outro lado. Isto repercute diretamente na
política do Estado, nas relações internacionais e nas eleições internas.
A mesma vinculação religiosa com a política dos Estados podemos
perceber em uma União Européia cristã que resiste a aceitação da Turquia
e convive com o crescimento da população muçulmana européia.
O
Estado moderno foi a grande criação da modernidade, somada mais tarde,
no século XVIII, com a afirmação do Estado constitucional.
Ao
contrário do que alguns apressadamente anunciam, o Estado nacional não
acabou, ainda existirá por algum tempo, assim como a modernidade está
aí, com todas as suas criações, em crise sim, mas sem podermos ainda
visualizar o que será a pós-modernidade anunciada e já proclamada por
alguns. Estamos ainda mergulhados nos problemas da modernidade.
1.3- O Estado moderno na América
Na América Latina, os Estados
nacionais se formam a partir das lutas pela independência no decorrer do
século XIX. Um fator comum nesses Estados é o fato de que, quase
invariavelmente, estes novos Estados soberanos foram construídos para
uma parcela minoritária da população de homens brancos e descendentes
dos europeus. Não interessava para as elites econômicas e militares
(masculina, branca e descendente de europeus) que os não brancos (os
povos originários e os afro-descentes), a maior parte dos habitantes, se
sentissem integrantes, se sentissem partes do Estado. Desta forma, em
proporções diferentes em toda a América, milhões de povos originários
(de grupos indígenas os mais distintos), assim como milhões de
imigrantes forçados africanos e de outras regiões do planeta, foram
radicalmente excluídos de qualquer concepção de nacionalidade. O direito
não era para estas maiorias, a nacionalidade não era para estas
pessoas. Não interessava às elites que indígenas e africanos se
sentissem nacionais.
De forma
diferente da Europa, onde foram construídos Estados nacionais para todos
que se enquadrassem ao comportamento religioso imposto pelo poder dos
Estados, após a expulsão dos considerados mais diferentes, na América
não se esperava que os indígenas e negros se comportassem como iguais,
era melhor que permanecessem à margem, ou mesmo, no caso dos povos
originários (chamados de “Índios” pelo invasor europeu), que não
existissem: milhões foram mortos.
A
situação começa a mudar com as revoluções democráticas e pacíficas da
Bolívia e do Equador, com seus poderes constituintes democráticos, que
fundaram um novo Estado, capaz de superar a brutalidade dos estados
nacionais nas Américas: o Estado Plurinacional, democrático e popular.
Nunca
na América tivemos tantos governos democráticos populares como neste
surpreendente século XXI. O importante é que estes governos não são
apenas democráticos representativos, mas fortemente participativos e
dialógicos.
2- O dispositivo moderno: nós X eles.
Neste íten vamos ver como que as
nomeações de grupos, os nomes coletivos que serviram para a unificação
do poder do Estado serviu, históricamente, para desagregar, excluir e
justificar genocídios e outras formas de violência.
A
construção dos significados que escondem complexidades e diversidades é
o tema do livro de Alain Badiou, La portée du mot juif. Cita o autor um
episódio ocorrido na França há algum tempo atrás. O primeiro-ministro
Raymond Barre diante de um atentado a uma cinagoga comentou para a
imprensa francesa o fato de que morreram judeus que estavam dentro da
cinagoga e franceses inocentes que passavam na rua quando a bomba
explodiu. Qual o significado da palavra judeu agiu de maneira
indisfarçável na fala do primeiro-ministro? A palavra “judeu” escondeu
toda a diversidade histórica, pessoal do grupo de pessoas que são
chamadas por este nome. A nomeação é um mecanismo de simplificação e de
geração de preconceitos que facilita a manipulação e a dominação. A
estratégia de nomear facilita a dominação.
Badiou
menciona que o anti-semitismo de Barre não mais é tolerado pela média
da opinião publica francesa. Entretanto um outro tipo de anti-semitismo
surgiu, vinculado aos movimentos em defesa da criação do estado
palestino. No livro Badiou não pretende discutir o novo ou o velho
anti-semitismo mas debater a existência de um significado excepcional da
palavra “judeu”, um significado sagrado, retirado do livre uso das
pessoas.
Assim como ocorre com
varias outras palavras mas de forma menos radical (liberdade e igualdade
por exemplo), a palavra “judeu” foi retirada do livre uso, da livre
significação. Ela ganhou um status sacralizado especial, intocável. O
seu sentido é pré-determinado e intocável, vinculado a um destino
coletivo, sagrado e sacralizado, no sentido que retira a possibilidade
das pessoas enxergarem a complexidade, historicidade e diversidade das
pessoas que recebem este nome.
Badiou
ressalta que o debate que envolve o anti-semitismo e a necessidade de
sua erradicação não recebe o mesmo tratamento de outras formas de
descriminação, perseguição, exclusão ou racismo. Existe uma compreensão
no que diz respeito à palavra “judeu” e à comunidade que reclama este
nome, que é capaz de criar uma posição paradigmática no campo dos
valores, superior a todos os demais. Não propriamente superior mas em um
lugar diferente. Desta forma pode-se discutir qualquer forma de
discriminação, mas quando se trata do “judeu” a questão é tratada como
universal, indiscutível, seja no sentido de proteção seja no sentido de
ataque. Da mesma forma, toda produção cultural, filosófica assim como as
políticas de estado tomam esta conotação excepcional. O fato é que o
nome judeu foi retirado das discussões ordinárias dos predicados de
identidade e foi especialmente sacralizado.
O
nome “judeu” é um nome em excesso em relação aos nomes ordinários e o
fato de ter sido uma vitima incomparável se transmite não apenas aos
descendentes mas a todos que cabem no predicado concernente, sejam
chefes de estado, chefe militares, mesmo que oprimam os palestinos ou
qualquer outro. Logo, a palavra “judeu” autoriza uma tolerância especial
com a intolerância daqueles que a portam, ou, ao contrário, uma
intolerância especial com os mesmos. Depende do lado que se está.
Uma
lição importante que se pode tirar da questão judaica, da questão
palestina, do nazismo e outros nomes que lembram massacres ilimitados de
pessoas, é a de que, toda introdução enfática de predicados
comunitários no campo ideológico, político ou estatal, seja de
criminalização (como nazista ou fascista) seja de sacrifício (como
cristãos, judeus e mulçumanos), esta nomeação nos expõe ao pior.
Vários
equívocos podem ser percebidos quando da aceitação ou utilização do
predicado radical para significar comunidades, países, religiões, etc.
Por exemplo, podemos encontrar pessoas comprometidas com projetos
democráticos, fechando os olhos ou mesmo apoiando um anti-semitismo
palestino, tudo pela opressão do estado judeu aos palestinos, ou, ao
contrário, outras pessoas, também comprometidas com um discurso
democrático, tolerarem praticas de tortura e assassinatos seletivos por
parte do estado de Israel, por ser este estado um estado “judeu”.
Combater
as nomeações, a sacralização de determinados nomes, significa defender a
democracia, o pluralismo, significa o reconhecimento de um sujeito que
não ignora os particularismos mas que ultrapasse este; que não tenha
privilégios e que não interiorize nenhuma tentativa de sacralizar os
nomes comunitários, religiosos ou nacionais.
Badiou
dedica o seu livro a uma pluralidade irredutível de nomes próprios, o
único real que se pode opor a ditadura dos predicados.
O
filme “O trem da vida” (Train de Vie dirigido por Radu Mihaileanu
divulgado no Brasil pela “Seleções DVD”) é um maravilhoso poema a
pluralidade de nomes próprios que foram reduzidos a um predicado “judeu”
na segunda guerra mundial. O filme ressalta a pessoa, os grupos dentro
dos grupos, e como a identificação com determinados grupos dentro de um
outro grupo gera segregação. A introdução do tema identidade e
identificação com grupos, religiões, estados, partidos, idéias, como
fator de segregação, sempre irracional. Como anulação do sujeito livre,
com a anulação do nome próprio em nome de um nome do grupo.
3- Duas perguntas sobre o direito moderno.
a.
Em que medida a grande novidade do final do século XX, a União
Européia, rompe com o dispositivo moderno? Adiantando o final da
resposta: em nada.
A União
Européia foi apresentada por muitos como a superação do estado moderno,
como a grande novidade e caminho a ser seguido. Será? Quando olhamos
hoje, em 2011, a União Européia em uma crise radical, podemos
compreender os diversos encobrimentos e mentiras que construíram esta
falsa opção.
Nada de novo. Se
resgatarmos toda a discussão já realizada neste texto veremos que o
estado moderno viabilizou o capitalismo e com este o domínio europeu e
estadunidense sobre o planeta. O estado moderno unificou o direito
estatal, criou uma moeda nacional, um exército nacional, uma polícia
nacional e inventou a nacionalidade, um sentimento de pertinência
artificialmente construído fundamental para o exercício do poder
central.
E a União Européia? A
união européia unificou o direito, especialmente o direito de
propriedade. Criou políticas econômicas uniformizadas e uma moeda
nacional, um sistema de controle sobre as pessoas representado pelo
sistema de segurança interna da União Européia, um sistema de defesa e
uma identidade nacional (ou européia) a partir do rebaixamento do outro
(o estrangeiro, o muçulmano, o judeu, o africano, o latino, etc).
Nada de novo.
A
União Européia e o direito europeu nada mais são do que a reprodução do
direito moderno, uniformizador e hegemônico. Lembremos que os estados
europeus são todos hegemônicos: castelhanos sobre os outros na Espanha;
ingleses sobre os outros no Reino Unido; francos sobre os outros na
França; e assim segue.
A União
Européia é cristã, não aceita a Turquia e não sabe o que fazer com os
diferentes, como sempre. Em 2010 lembremos que a França expulsou 9.000
ciganos.
b. Outra pergunta: em que medida
o direito internacional moderno rompe com o dispositivo de encobrimento
e exclusão do outro? Alguma coisa começa a acontecer.
O
direito internacional na sua origem, talvez mais do que o direito
comunitário, é hegemônico, europeu, excludente e racista. Não é
necessário muito esforço para constatar isto. Basta para confirmar ler o
tratado de Versalhes e a Carta das Nações Unidas nos artigos referentes
ao Conselho de Tutela, por exemplo.
Entretanto
o direito internacional mudou, importantes mudanças vêm ocorrendo e aos
poucos instituições e instrumentos pertencentes a um passando recente
vão sendo superados. Exemplo maior são os documentos (convenções) da OIT
sobre os povos indígenas.
Diante
da crise do estado nacional e do direito nacional; da crise econômica
radical que mostra o esgotamento do sistema capitalista moderno e
global; da crise ambiental e as urgentes mudanças no padrão
internacional de crescimento e geração de energia; é fundamental pensar
uma nova ordem internacional, ou melhor, mundial.
Esta
nova ordem precisa romper com o paradigma moderno, não há mais espaços
para hegemonias. A pretensão européia e norte-americana de domínio
econômico e militar global está se esvaindo. O domínio militar é
impossível uma vez que custará a vida de todos, inclusive dos
dominadores. Isto está posto pela guerra do Iraque e Afeganistão e a
impossibilidade de enfrentar Irã e Coréia do Norte.
O
domínio econômico do capitalismo global, hoje uma realidade, não se
sustenta mais do que quatro décadas. É impossível sustentar o ritmo de
exploração dos recursos naturais e o comprometimento do meio ambiente
com o atual modelo de crescimento do qual depende a economia global para
geração de riquezas e empregos.
A
insistência na manutenção deste modelo se mostra completamente
irracional. Neste momento de crise do paradigma moderno a sua superação
começa a se apresentar e chama a atenção de todo o mundo: o estado
plurinacional.
4- O estado plurinacional como
uma alternativa para uma nova ordem nacional constitucional e
internacional (mundial) democrática.
.
A
América Latina vem sofrendo um processo de transformação social
democrática importante e surpreendente. Direitos historicamente negados
às populações originárias agora são conquistados. Em meio a estes
variados processos de transformação social, percebemos que cada país,
diante de suas peculiaridades históricas, vem trilhando caminhos
diferentes, mas nenhum abandonou o caminho institucional da democracia
representativa, somando a está uma forte democracia dialógica
participativa.
Vamos apenas
introduzir este conceito como fruto de um processo democrático que se
iniciou com revoluções pacíficas, onde os povos indígenas, finalmente,
após 500 anos de exclusão radical, reconquistam gradualmente sua
liberdade e dignidade.
Como vimos
a formação dos estados nacionais na América Latina ocorreu de maneira
bastante diferente do processo Europeu. A formação do Estado moderno na
América Latina os Estados nacionais ocorrem a partir das lutas pela
independência no decorrer do século XIX. Um fator comum nestes Estados é
o fato de que, quase invariavelmente, foram Estados construídos para
uma parcela minoritária da população, onde não interessava para as
elites econômicas e militares, que a maior parte da população se
sentisse integrante, se sentisse parte de Estado. Desta forma, em
proporções diferentes em toda a América, milhões de povos originários
(de grupos indígenas os mais distintos) assim como milhões de imigrantes
forçados africanos, foram radicalmente excluídos de qualquer idéia de
nacionalidade. O direito não era para estas maiorias, a nacionalidade
não era para estas pessoas. Não interessava às elites que indígenas e
africanos se sentissem nacionais.
Neste
sentido, as revoluções da Bolívia e do Equador, seus poderes
constituintes democráticos, fundam um novo Estado, capaz de superar a
brutalidade dos estados nacionais nas Américas: o Estado plurinacional,
democrático e popular.
A idéia de
Estado Plurinacional pode superar as bases uniformizadoras e
intolerantes do Estado nacional, onde todos os grupos sociais devem se
conformar aos valores determinados na constituição nacional em termos de
direito de família, direito de propriedade e sistema econômico entre
outros aspectos importantes da vida social.
A
grande revolução do Estado Plurinacional é o fato que este Estado
constitucional, democrático participativo e dialógico pode finalmente
romper com as bases teóricas e sociais do Estado nacional constitucional
e democrático representativo (pouco democrático e nada representativo
dos grupos não uniformizados), uniformizador de valores e logo
radicalmente excludente.
O Estado
plurinacional reconhece a democracia participativa como base da
democracia representativa e garante a existência de formas de
constituição da família e da economia segundo os valores tradicionais
dos diversos grupos sociais (étnicos e culturais) existentes.
Nas palavras de Ileana Almeida sobre o processo de construção do Estado Plurinacional no Equador:
“Sin
embargo, no se toma en cuenta que los grupos étnicos no luchan
simplemente por parcelas de tierras cultivables, sino por un derecho
histórico. Por lo mismo se defienden las tierras comunales y se trata de
preservar las zonas de significado ecológico-cultural.”
Certamente
este Estado joga por terra o projeto uniformizador do Estado moderno
que sustenta a sociedade capitalista como sistema único fundado na falsa
naturalização da família e da propriedade e mais tarde da economia
liberal.
Nas palavras de Ileana Almeida:
“Al
funcionar el Estado como representación de uma nacion única cumple
también su papel en el plano ideológico. La privación de derechos
políticos a las nacionalidades no hispanizadas lleva al desconocimiento
de la existência misma de otros pueblos y convierte al indígena em
vitima del racismo. La ideología de la discriminación, aunque no es
oficial, de hecho está generalizada em los diferentes estratos étnicos.
Esto empuja a muchos indígenas a abandonar su identidad y pasar a forma
filas de la nación ecuatoriana aunque, pó lo general, en su sectores
más explotados.”
A Constituição
da Bolívia, na mesma linha de criação de um Estado Plurinacional dispõe
sobre a questão indígena em cerca de 80 dos 411 artigos. Pelo texto, os
36 “povos originários” (aqueles que viviam na Bolívia antes da invasão
dos europeus), passam a ter participação ampla efetiva em todos os
níveis do poder estatal e na economia. Com a aprovação da nova
Constituição, a Bolívia passou a ter uma cota para parlamentares
oriundos dos povos indígenas, que também passarão a ter propriedade
exclusiva sobre os recursos florestais e direitos sobre a terra e os
recursos hídricos de suas comunidades. A Constituição estabelece a
equivalência entre a justiça tradicional indígena e a justiça ordinária
do país. Cada comunidade indígena poderá ter seu próprio “tribunal”, com
juízes eleitos entre os moradores. As decisões destes tribunais não
poderão ser revisadas pela Justiça comum.
Outro
aspecto importante é o fato da descentralização das normas eleitorais.
Assim os representantes dos povos indígenas poderão ser eleitos a partir
das normas eleitorais de suas comunidades.
A
Constituição ainda prevê a criação de um Tribunal Constitucional
plurinacional, com membros eleitos pelo sistema ordinário e pelo sistema
indígena.
A nova Constituição
democrática transforma a organização territorial do país. O novo texto
prevê a divisão em quatro níveis de autonomia: o departamental
(equivalente aos Estados brasileiros), o regional, o municipal e o
indígena. Pelo projeto, cada uma dessas regiões autônomas poderá
promover eleições diretas de seus governantes e administrar seus
recursos econômicos.
O projeto
constitucional avança ainda na construção do Estado Plurinacional ao
acabar com a vinculação do estado com a religião (a religião católica
ainda era oficial) transformando a Bolívia em um Estado laico (o que o
Brasil é desde 1891).
Outro aspecto importante é o reconhecimento de várias formas de constituição da família.
Além
de importante instrumento de transformação social, garantia de direitos
democráticos, sociais, econômicos plurais, e pessoais diversos, a
Constituição da Bolívia é um modelo de construção de uma nova ordem
política, econômica e social internacional. É o caminho para se pensar
em um Estado democrático e social de direito internacional.
Citando novamente Ileana Almeida:
“En
contra de los que podría pensarse, el reconocimiento de la
especificidad étinica no fracciona la unidad de las fuerzas democráticas
que se alinean en contra del imperialismo. Todo lo contrario, mientras
más se robustezca la conciencia nacional de los diferentes grupos, más
firme será la resitencia al imperialismo bajo cualquiera de sus formas
(genocídio, imposición política,, religiosa o cultural) y, sobre todo,
la explotación econômica”.
A
América Latina (melhor agora a América Plural), que nasce renovada
nestas democracias dialógicas populares, se redescobre também indígena,
democrática, economicamente igualitária e socialmente e culturalmente
diversa, plural. Em meio à crise econômica e ambiental global, que
anuncia o fim de uma época de violências, fundada no egoísmo e na
competição a nossa América anuncia finalmente algo de novo, democrático e
tolerante, capaz de romper com a intolerância unificadora e violenta.
Conclusão
Qual a conexão entre o direito
internacional e o novo direito constitucional boliviano e equatoriano?
Este é o ponto central e a proposta final deste artigo.
Trata-se
da substituição de um sistema europeu pretensamente (e falsamente)
civilizatório e universal por um sistema não hegemônico, democrático,
dialógico, plural e complementar. Vamos explicar cada uma destas
palavras.
A proposta de uma nova
ordem social, econômica e cultural mundial (ou internacional) parte de
uma mudança radical na sua constituição. O direito europeu não será mais
visto como universal, como o modelo de civilização mais evoluído. O
pensamento europeu, a filosofia européia não será mais vista como a
única filosofia e os seus valores como os mais avançados. No lugar de
uma ordem hegemônica devemos construir um sistema não hegemônico, onde a
cultura e os valores europeus não sejam impostos pelo poder econômico e
militar como universais, mas onde se reconheça a existência de sistemas
de valores, de sistemas filosóficos e culturais que possam ser
complementares. O primeiro passo, portanto, é uma radical mudança
paradigmática. O que é hoje, muitas vezes considerado universal, como o
individualismo liberal e o liberalismo econômico, por exemplo, deverá
ser compreendido como regional e cultural, e logo pertencente a uma
racionalidade específica ou a uma forma de consciência entre outras
formas de consciência. O sistema econômico e social europeu ou
norte-americano é regional e não universal.. Em outras palavras, as
transformações ocorridas em outras sociedades, em outras comunidades,
não levarão inevitavelmente a um só final. Isto representa a superação
da visão linear da história. Trata-se, portanto, da superação da idéia
de que a evolução das culturas inferiores levará a civilização superior
que seria a européia.
Uma nova ordem mundial deve partir de uma reformulação nas bases ideológicas. Sem isto não se constrói nova ordem.
A
partir daí, a nova ordem não hegemônica não haverá espaço para
construções hegemônicas e muito menos sua institucionalização como
ocorre por exemplo no conselho de segurança.
Os
pragmáticos de sempre dirão neste momento: mas como desafiar o poder
das potências nucleares? Podemos trazer para este debate o mito dos
deuses gregos. Os deuses como criação dos mortais, dependiam da crença
destes mortais para existirem. Ou seja, todo poder dos deuses depende da
crença de quem sofre a ação deste poder. O dia em que as pessoas (os
simples mortais) não acreditarem mais nos deuses, eles deixaram de
existir. Exemplos práticos desta força existem na história recente. A
força das potencias econômicas; das potências nucleares; do poder
econômico privado, existe dentro de um sistema de valores específicos. É
um jogo que se recusarmos a jogar não terá mais razão de existir.
A
nova ordem global fundada na experiência democrática boliviana deve ser
portanto multi-paradigmática. As pessoas, os grupos, países, que
sentarem à mesa para discutir terão como obrigatoriedade o diálogo
permanente. O diálogo permanente será a principal ou talvez única
obrigatoriedade. A grande diferença é que neste novo espaço não poderão
existir os donos das regras do jogo; não poderão existir os donos dos
valores que fundamentam o diálogo; não poderão existir os donos das
sanções e os permanentemente sancionados. Este espaço deverá ser
construído sobre uma lógica de complementaridade, onde diversas
filosofias, diversos valores, diversas formas de consciência sejam
reconhecidas, não apenas como iguais, mas como complementares.
Uma
pergunta deverá ser formulada para reflexão a partir de agora: quem
serão os novos sujeitos deste novo direito internacional democrático?
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.