Testemunhos,
acontecimentos, números e a filosofia.[1]
por
José Luiz Quadros de Magalhães
Algumas lideranças de direita, no
Brasil, vêm utilizando uma velha técnica, amplamente utilizada por Igrejas, as
mais variadas, para convencer as pessoas de suas "verdades": o
depoimento pessoal ou, o testemunho. Assim vemos em alguns espaços midiáticos
ou mesmo auditórios de universidades, alguns testemunhos de pessoas que se
dizem ex-comunistas arrependidos, como se fossem pecadores convertidos. É claro
que o relato destas experiências pessoais que levam a alguma conversão cumprem
uma função ideológica, o que compromete a sua validade para a compreensão de qualquer
sistema socioeconômico e político, ou mesmo religioso. Podemos dizer mais,
estes testemunhos servem essencialmente como instrumentos (muitas vezes
eficazes) de encobrimento e distorção com fins de fortalecer o poder de algum
grupo religioso ou político.
Não estou querendo dizer que
qualquer relato de experiências pessoais seja absolutamente inválido. Para que
os relatos individuais, de experiências individuais, tenham algum valor na
compreensão do mundo ou de qualquer sistema social, político e econômico, este
relato deve ser compreendido dentro do olhar ideológico do seu autor e da
função que o relato cumpre no momento em que é feito, além de ser inserido em
um sistema de informações apuradas por meio de pesquisas (onde o método esteja
claro) e referências históricas onde as fontes sejam conhecidas. Estas
pesquisas empíricas, que nos fornecem dados sobre uma dada realidade, e as
referências históricas que nos oferecem uma visão do processo de transformação
de uma sociedade, devem ser, também, compreendidos dentro de uma perspectiva
ideológica (ideologia aqui compreendida enquanto um sistema de ideias). Não há
neutralidade possível, e, desde as perguntas que se faz em uma pesquisa e sua
interpretação até a interpretação de fatos históricos, provêm de algum lugar de
compreensão. Em outras palavras, sempre falamos de um lugar (a partir de um
lugar) de compreensão. Quem fala, fala de um lugar. Este lugar nos oferece uma
perspectiva do que é estudado, lugar este, que ao nos revelar varias coisas
também encobre uma série de outras coisas. Não há neutralidade possível. Enfim,
sem a filosofia e a psicanálise de nada adiantam os depoimentos, experiências,
números, pesquisas, histórias e tudo mais.
Convém aqui lembrarmos o sentido de
ideologia empregado neste texto. A palavra ideologia pode ser compreendida como
uma sistema de ideias mais ou menos coerente, por meio do qual acessamos o
mundo. Nosso olhar, neste sentido é sempre ideológico. Um outro sentido para a
palavra ideologia é a sua compreensão como mecanismo proposital de
encobrimento, mecanismo de distorção da realidade. Neste sentido ideologia é
mentira. Os mecanismos ideológicos de distorção e encobrimento atuam em dois
grandes espaços: na formação de nossa compreensão do mundo, na atribuição de
significados aos significantes essenciais (o que a família, a escola e a igreja
faz com as pessoas nos primeiros anos de vida), e no encobrimento e distorção
dos fatos, nos impedindo de construir nossa interpretação sobre o
"real" ao nos impedir o acesso aos fatos, ou então, de distorcer
estes mesmo fatos (o que a mídia, a propaganda, o marketing, a igreja, a
universidade, os cursos técnicos e outros aparelhos continuam fazendo com as
pessoas para o resto da vida). Reconhecendo que não há fatos puros (não temos acesso
ao "real" mas sim a "realidade" que é o "real"
interpretado), os mecanismos ideológicos encobrem o "real" (que pode
ser compreendido também como sendo o próprio aparelho ideológico). Assim, no
lugar de construir nossa interpretação sobre o "real" construímos
nossa interpretação do "real" (a realidade) sobre uma falsa
representação deste.
Nós, pessoas (seres que vivem),
somos autopoiéticos (auto-referenciais e auto-reproduditos). Isto significa que
somos seres interpretativos. Nossa única possibilidade de acessar o
"real" que está fora de nós será sempre, inevitavelmente, por meio de
nós mesmos. Assim, estamos, por enquanto e até onde podemos compreender e
experimentar, condenados a nós mesmos. Entre nós e o "real" estamos
nós mesmos, e o que podemos conhecer é a "realidade", ou seja, o
"real" interpretado. O que chamamos de "real" é um,
possivelmente existente, absoluto inacessível, ao qual teremos acesso a
fragmentos distorcidos pelo nosso "olhar". Por vezes encontramos o
"real" em sua forma brutal, como experiência radical e violenta e
logo indescritível: a violência de um "campo de concentração", nos
muitos que existem por aí, mas a função diária do real é servir de base para a
construção das realidades, o que seria desejável, mas que raramente ocorre
nestes tempos de embates ideológicos radicais pela construção dos sentidos dos
fatos, das palavras, dos sistemas, da existência, enfim, do sentido de onde nos
encontramos e do que fazemos no mundo.
A partir destas reflexões voltemos
aos testemunhos: os testemunhos de
experiências individuais são construções pessoais re-experimentadas a cada
vez que se testemunha. A carga ideológica se renova e aprofunda até não restar
mais nada do que ideologia em estado puro (ideologia aí como encobrimento,
ocultamento, distorção proposital). O testemunho[2] é
inverdade mergulhada em uma "verdade" ideológica (verdade para quem
crê na ideologia, é claro). Quem testemunha acredita fortemente na necessária
mentira do testemunho (acredita a tal ponto de negar a mentira que sabe
existir) para a afirmação de uma "verdade" ideológica. A
"verdade" ideológica anula, conscientemente a mentira do testemunho,
ou em outra operação possível, a verdade ideológica atesta a
"verdade" da mentira do testemunho. O testemunho é estratégia para se
prevalecer a verdade que efetivamente importa para quem testemunha. A cada
testemunho os últimos fragmentos do "real" (a realidade: o real
interpretado) vão se perdendo até restar a pureza da "mentira"
(verdade para quem crê) ideológica que cumpre uma função "real". Aí
está uma verdade radical: uso uma
experiência individual (interpretada), para reafirmar algo (ou provar algo) que
escolho como verdade preliminar à própria experiência, ou seja, ao experimentar
algo já decidimos previamente o que fazer com esta experiência.
A verdade está na crença, na
ideologia que transforma em verdade um relato de uma experiência que se
desconecta, a cada relato, com qualquer fragmento do "real".
Assim, as pessoas verão o que
anteriormente já decidiram ver até o momento que um "acontecimento"[3]
possa contrariar a verdade previamente decidida. Portanto, veremos o que
queremos até que um acontecimento nos converta. Aí estaremos convictos de um
outra crença reforçada pelo testemunho de um "acontecimento" que nos
converteu. A operação se renova: testemunho, convicção, verdade, mentira,
ideologia.
Devemos retomar a fala de Slavoj
Zizek ao inverter a proposição: "é necessário ver para crer". O
contrário é bem pertinente: "é necessário crer para ver".
Recentemente visitei a maravilhosa
ilha de Cuba com meus dois filhos mais velhos. Minha experiência de viagem com
meus filhos à Cuba passou a ser um testemunho para meus amigos escolhidos para
ouvir aquele relato, que pôde interessar a alguns queridos amigos comunistas na
renovação de nossas esperanças, e, para outros não convertidos, em uma
tentativa de prepará-los para o "acontecimento" que enfim os redimirá
e os converterá a minha crença.
Esta maravilhosa experiência serviu
para reafirmar minha crença no sistema socialista, capaz de construir pessoas
éticas e solidárias em uma grande cidade onde a violência urbana manifestada
por homicídios e latrocínios está ausente. É claro que como todos, escondi de
mim mesmo toda experiência que pudesse enfraquecer minha crença, ou, utilizei
toda a experiência que pudesse ser negativa, para reafirmar minha crença no
difícil mas possível processo de construção de uma sociedade diferente. Da
mesma forma, mas no sentido inverso, o testemunho de muitos que visitam Cuba só
reforçará a sua descrença no sistema, e o filtro do que serve e não serve para
reforçar a crença anterior (ou a decisão tomada antes de experimentar a viagem,
de como vou entender a viagem) será apenas invertida. O testemunho público de
qualquer experiência pessoal terá sempre um conteúdo fortemente ideológico de
querer mostrar ao descrente o sucesso de minha crença. Isto tem pouco valor, na
compreensão de qualquer coisa, a não ser na compreensão de como funcionamos
ideologicamente e quase sempre estrategicamente em nossos testemunhos. Nossas
experiências serão experimentadas da forma como decidimos antes
experimentá-las. Assim ocorrerá, talvez, na maioria das vezes. O resultado de
nossas experiências já está decidido antes de experimentarmos, a não ser que
ocorra uma experiência forte: um acontecimento (o que raramente ocorrerá em
viagem de turismo). O acontecimento pode mudar tudo, pode mudar a forma como
experimentamos, mas, o processo acima descrito, continuará ocorrendo, o que faz
com que o acontecimento pessoal não interesse a ninguém, a não ser a quem
experimentou. O que pode interessar a todos é como ideologicamente utilizarei
este acontecimento nas tentativas de converter o outro a partir da minha
experiência.
Voltemos ao
"acontecimento". O que poderá despertar na pessoa a crença que
permitirá esta pessoa ver o que eu vejo? Um "acontecimento".
Precisamos então acrescentar mais uma questão. O acontecimento é sempre pessoal
no sentido que cada pessoa terá sua experiência única com o
"acontecimento", mas algo precisa ser compreendido: existem
experiências micro (micro histórias), que acontecem com a pessoa em espaços
privados (como a história da vida privada de uma pessoa), experiências em
espaços restritos. Estes "acontecimentos" micro, se perdida a
perspectiva macro (contexto macro) em que se inserem, servirão para reafirmar
ideologias ou escolhas anteriores. Servirão como reprodução permanente do que
acreditava ou passei a acreditar (claro que existem acontecimentos que
confirmam). Existem também macro "acontecimentos": uma guerra; uma
revolução; uma catástrofe ambiental. Não esquecendo (é óbvio) que este
"acontecimento macro" invade as micro histórias, nossa questão é
buscar entender como o "acontecimento macro", em macro história, pode
mudar todas as micro-histórias. Em outras palavras, qual acontecimento pode nos
mobilizar, qual acontecimento pode nos despertar do mergulho
"ideológico" (ideologia enquanto encobrimento) em que nos
encontramos. Qual acontecimento pode nos resgatar da negação ideológica, das
estratégias de encobrimentos; das mentiras que repetimos para nós e para os
outros; qual acontecimento poderá nos permitir ver o oculto e poderá nos
mobilizar em um processo transformador que nos resgate do mundo parcial
(incompleto) em que nos encontramos e que muitas vezes (talvez a maioria das
vezes), comodamente escolhemos permanecer.
Reformulemos então a questão: é
claro que o "acontecimento" se acontece, acontecerá para cada um de
nós de forma diferente. Importante notar, entretanto, que existem experiências
individuais e coletivas. As experiências individuais (em micro espaços)
interessam para mais pessoas se contextualizadas em macro espaços (complexos e
sistêmicos) e compreendidas para além da função ideológica do testemunho
confirmador ou não de alguma ideia, mas também, principalmente, como o
"real" de um mecanismo de confirmação artificial de qualquer coisa
(de forma positiva ou negativa, ou em outras palavras confirmação ou negação -
confirmação negativa)[4]. O
"acontecimento" pessoal só "acontece" para a pessoa: a
experiência individual que converte alguém ao cristianismo, ao capitalismo
liberal ou conservador, ao comunismo ou ao anarquismo, é pessoal e
intransferível. Para os outros, o "acontecimento" não acontece, se
transforma em relato (testemunho) que tem como principal função servir como
depoimento ideológico desonesto, em boa parte dos casos. Ora, "eu era um
bêbado, vivia drogado até que encontrei Jesus"; ou; "eu era do
partido comunista, autoritário e equivocado até que encontrei a libertação
individual no meu sucesso pessoal" ou ainda, "eu era um capitalista
desalmado, frio e egoísta até que encontrei o socialismo e hoje sou solidário e
honesto". Isto é aplicado a qualquer outra experiência de conversão: o seu
uso coletivo será sempre mentiroso, enganador. Se o acontecimento que criou a
crença na pessoa foi uma experiência pessoal intransferível, qualquer tentativa
de transferência para o outro é grosseiramente falsa. O acontecimento pessoal
que gera a conversão individual só acontece para a pessoa.
Deste ponto precisamos buscar então
a possibilidade do universal: haverá um acontecimento coletivo que gere uma
experiência coletiva de conversão, honesta? Sim, e sobre isto Badiou escreve no
seu livro "São Paulo". Ficam por enquanto algumas conclusões em forma
(sempre) de perguntas: um acontecimento macro pode mobilizar e transformar cada
micro história? Qual acontecimento macro poderá mobilizar todos em torno de sua
verdade? Qual é o universal possível?
Para
além da compreensão do uso ideológico dos depoimentos e testemunhos de
experiências "libertadoras" pessoais e antes do conhecimento de um
"acontecimento" pessoal transformador nos seus limites individuais (um
acontecimento acontece, mas podemos fazer acontecer) e de um acontecimento
"coletivo" que possa mobilizar a todos em torno de uma questão comum,
um ponto de partida para a construção de um "universal" possível,
precisamos continuar no caminho da compreensão dos sistemas sociais, econômicos
e políticos e de sua transformação. Compreender, desconstruir, resistir e
construir.
[1]
Este texto dialoga ou surge de reflexões a partir das obras de Slavoj Zizek;
Alain Badiou; Giorgio Agamben; Louis Althusser e Karl Marx.
[2]
Importante lembrar que quando nos referimos ao testemunho, nos referimos aos
relatos de experiências pessoais, especialmente as experiências de conversão,
mas não apenas, podem ser relatos de
confirmação ou de negação. A discussão central deste texto é o uso do
testemunho como mecanismo de conversão, negação ou confirmação ideológica. Em
outras palavras, o uso ideológico do testemunho, como confirmação de uma
verdade previa: confirmação de que algo é valido ou inválido (negação). Nestes
limites o texto deve ser interpretado.
[3]
Um "acontecimento" não é necessariamente libertador. Pode ser uma
confirmação ou uma armadilha para um novo mergulho ideológico. Uma confirmação
de uma necessidade de conforto ou fuga.
[4]
O real neste caso é o mecanismo de confirmação por meio do testemunho, no qual
nos envolvemos e conscientemente utilizamos.
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