domingo, 17 de novembro de 2013

4- Ensaio: Testemunhos, acontecimentos, números e a filosofia - por José Luiz Quadros de Magalhães



Testemunhos, acontecimentos, números e a filosofia.[1]

por José Luiz Quadros de Magalhães



            Algumas lideranças de direita, no Brasil, vêm utilizando uma velha técnica, amplamente utilizada por Igrejas, as mais variadas, para convencer as pessoas de suas "verdades": o depoimento pessoal ou, o testemunho. Assim vemos em alguns espaços midiáticos ou mesmo auditórios de universidades, alguns testemunhos de pessoas que se dizem ex-comunistas arrependidos, como se fossem pecadores convertidos. É claro que o relato destas experiências pessoais que levam a alguma conversão cumprem uma função ideológica, o que compromete a sua validade para a compreensão de qualquer sistema socioeconômico e político, ou mesmo religioso. Podemos dizer mais, estes testemunhos servem essencialmente como instrumentos (muitas vezes eficazes) de encobrimento e distorção com fins de fortalecer o poder de algum grupo religioso ou político.

            Não estou querendo dizer que qualquer relato de experiências pessoais seja absolutamente inválido. Para que os relatos individuais, de experiências individuais, tenham algum valor na compreensão do mundo ou de qualquer sistema social, político e econômico, este relato deve ser compreendido dentro do olhar ideológico do seu autor e da função que o relato cumpre no momento em que é feito, além de ser inserido em um sistema de informações apuradas por meio de pesquisas (onde o método esteja claro) e referências históricas onde as fontes sejam conhecidas. Estas pesquisas empíricas, que nos fornecem dados sobre uma dada realidade, e as referências históricas que nos oferecem uma visão do processo de transformação de uma sociedade, devem ser, também, compreendidos dentro de uma perspectiva ideológica (ideologia aqui compreendida enquanto um sistema de ideias). Não há neutralidade possível, e, desde as perguntas que se faz em uma pesquisa e sua interpretação até a interpretação de fatos históricos, provêm de algum lugar de compreensão. Em outras palavras, sempre falamos de um lugar (a partir de um lugar) de compreensão. Quem fala, fala de um lugar. Este lugar nos oferece uma perspectiva do que é estudado, lugar este, que ao nos revelar varias coisas também encobre uma série de outras coisas. Não há neutralidade possível. Enfim, sem a filosofia e a psicanálise de nada adiantam os depoimentos, experiências, números, pesquisas, histórias e tudo mais.

            Convém aqui lembrarmos o sentido de ideologia empregado neste texto. A palavra ideologia pode ser compreendida como uma sistema de ideias mais ou menos coerente, por meio do qual acessamos o mundo. Nosso olhar, neste sentido é sempre ideológico. Um outro sentido para a palavra ideologia é a sua compreensão como mecanismo proposital de encobrimento, mecanismo de distorção da realidade. Neste sentido ideologia é mentira. Os mecanismos ideológicos de distorção e encobrimento atuam em dois grandes espaços: na formação de nossa compreensão do mundo, na atribuição de significados aos significantes essenciais (o que a família, a escola e a igreja faz com as pessoas nos primeiros anos de vida), e no encobrimento e distorção dos fatos, nos impedindo de construir nossa interpretação sobre o "real" ao nos impedir o acesso aos fatos, ou então, de distorcer estes mesmo fatos (o que a mídia, a propaganda, o marketing, a igreja, a universidade, os cursos técnicos e outros aparelhos continuam fazendo com as pessoas para o resto da vida). Reconhecendo que não há fatos puros (não temos acesso ao "real" mas sim a "realidade" que é o "real" interpretado), os mecanismos ideológicos encobrem o "real" (que pode ser compreendido também como sendo o próprio aparelho ideológico). Assim, no lugar de construir nossa interpretação sobre o "real" construímos nossa interpretação do "real" (a realidade) sobre uma falsa representação deste.



            Nós, pessoas (seres que vivem), somos autopoiéticos (auto-referenciais e auto-reproduditos). Isto significa que somos seres interpretativos. Nossa única possibilidade de acessar o "real" que está fora de nós será sempre, inevitavelmente, por meio de nós mesmos. Assim, estamos, por enquanto e até onde podemos compreender e experimentar, condenados a nós mesmos. Entre nós e o "real" estamos nós mesmos, e o que podemos conhecer é a "realidade", ou seja, o "real" interpretado. O que chamamos de "real" é um, possivelmente existente, absoluto inacessível, ao qual teremos acesso a fragmentos distorcidos pelo nosso "olhar". Por vezes encontramos o "real" em sua forma brutal, como experiência radical e violenta e logo indescritível: a violência de um "campo de concentração", nos muitos que existem por aí, mas a função diária do real é servir de base para a construção das realidades, o que seria desejável, mas que raramente ocorre nestes tempos de embates ideológicos radicais pela construção dos sentidos dos fatos, das palavras, dos sistemas, da existência, enfim, do sentido de onde nos encontramos e do que fazemos no mundo.

            A partir destas reflexões voltemos aos testemunhos: os testemunhos de experiências individuais são construções pessoais re-experimentadas a cada vez que se testemunha. A carga ideológica se renova e aprofunda até não restar mais nada do que ideologia em estado puro (ideologia aí como encobrimento, ocultamento, distorção proposital). O testemunho[2] é inverdade mergulhada em uma "verdade" ideológica (verdade para quem crê na ideologia, é claro). Quem testemunha acredita fortemente na necessária mentira do testemunho (acredita a tal ponto de negar a mentira que sabe existir) para a afirmação de uma "verdade" ideológica. A "verdade" ideológica anula, conscientemente a mentira do testemunho, ou em outra operação possível, a verdade ideológica atesta a "verdade" da mentira do testemunho. O testemunho é estratégia para se prevalecer a verdade que efetivamente importa para quem testemunha. A cada testemunho os últimos fragmentos do "real" (a realidade: o real interpretado) vão se perdendo até restar a pureza da "mentira" (verdade para quem crê) ideológica que cumpre uma função "real". Aí está uma verdade radical:  uso uma experiência individual (interpretada), para reafirmar algo (ou provar algo) que escolho como verdade preliminar à própria experiência, ou seja, ao experimentar algo já decidimos previamente o que fazer com esta experiência.

            A verdade está na crença, na ideologia que transforma em verdade um relato de uma experiência que se desconecta, a cada relato, com qualquer fragmento do "real".

            Assim, as pessoas verão o que anteriormente já decidiram ver até o momento que um "acontecimento"[3] possa contrariar a verdade previamente decidida. Portanto, veremos o que queremos até que um acontecimento nos converta. Aí estaremos convictos de um outra crença reforçada pelo testemunho de um "acontecimento" que nos converteu. A operação se renova: testemunho, convicção, verdade, mentira, ideologia.

            Devemos retomar a fala de Slavoj Zizek ao inverter a proposição: "é necessário ver para crer". O contrário é bem pertinente: "é necessário crer para ver".

            Recentemente visitei a maravilhosa ilha de Cuba com meus dois filhos mais velhos. Minha experiência de viagem com meus filhos à Cuba passou a ser um testemunho para meus amigos escolhidos para ouvir aquele relato, que pôde interessar a alguns queridos amigos comunistas na renovação de nossas esperanças, e, para outros não convertidos, em uma tentativa de prepará-los para o "acontecimento" que enfim os redimirá e os converterá a minha crença.

            Esta maravilhosa experiência serviu para reafirmar minha crença no sistema socialista, capaz de construir pessoas éticas e solidárias em uma grande cidade onde a violência urbana manifestada por homicídios e latrocínios está ausente. É claro que como todos, escondi de mim mesmo toda experiência que pudesse enfraquecer minha crença, ou, utilizei toda a experiência que pudesse ser negativa, para reafirmar minha crença no difícil mas possível processo de construção de uma sociedade diferente. Da mesma forma, mas no sentido inverso, o testemunho de muitos que visitam Cuba só reforçará a sua descrença no sistema, e o filtro do que serve e não serve para reforçar a crença anterior (ou a decisão tomada antes de experimentar a viagem, de como vou entender a viagem) será apenas invertida. O testemunho público de qualquer experiência pessoal terá sempre um conteúdo fortemente ideológico de querer mostrar ao descrente o sucesso de minha crença. Isto tem pouco valor, na compreensão de qualquer coisa, a não ser na compreensão de como funcionamos ideologicamente e quase sempre estrategicamente em nossos testemunhos. Nossas experiências serão experimentadas da forma como decidimos antes experimentá-las. Assim ocorrerá, talvez, na maioria das vezes. O resultado de nossas experiências já está decidido antes de experimentarmos, a não ser que ocorra uma experiência forte: um acontecimento (o que raramente ocorrerá em viagem de turismo). O acontecimento pode mudar tudo, pode mudar a forma como experimentamos, mas, o processo acima descrito, continuará ocorrendo, o que faz com que o acontecimento pessoal não interesse a ninguém, a não ser a quem experimentou. O que pode interessar a todos é como ideologicamente utilizarei este acontecimento nas tentativas de converter o outro a partir da minha experiência.

            Voltemos ao "acontecimento". O que poderá despertar na pessoa a crença que permitirá esta pessoa ver o que eu vejo? Um "acontecimento". Precisamos então acrescentar mais uma questão. O acontecimento é sempre pessoal no sentido que cada pessoa terá sua experiência única com o "acontecimento", mas algo precisa ser compreendido: existem experiências micro (micro histórias), que acontecem com a pessoa em espaços privados (como a história da vida privada de uma pessoa), experiências em espaços restritos. Estes "acontecimentos" micro, se perdida a perspectiva macro (contexto macro) em que se inserem, servirão para reafirmar ideologias ou escolhas anteriores. Servirão como reprodução permanente do que acreditava ou passei a acreditar (claro que existem acontecimentos que confirmam). Existem também macro "acontecimentos": uma guerra; uma revolução; uma catástrofe ambiental. Não esquecendo (é óbvio) que este "acontecimento macro" invade as micro histórias, nossa questão é buscar entender como o "acontecimento macro", em macro história, pode mudar todas as micro-histórias. Em outras palavras, qual acontecimento pode nos mobilizar, qual acontecimento pode nos despertar do mergulho "ideológico" (ideologia enquanto encobrimento) em que nos encontramos. Qual acontecimento pode nos resgatar da negação ideológica, das estratégias de encobrimentos; das mentiras que repetimos para nós e para os outros; qual acontecimento poderá nos permitir ver o oculto e poderá nos mobilizar em um processo transformador que nos resgate do mundo parcial (incompleto) em que nos encontramos e que muitas vezes (talvez a maioria das vezes), comodamente escolhemos permanecer.

            Reformulemos então a questão: é claro que o "acontecimento" se acontece, acontecerá para cada um de nós de forma diferente. Importante notar, entretanto, que existem experiências individuais e coletivas. As experiências individuais (em micro espaços) interessam para mais pessoas se contextualizadas em macro espaços (complexos e sistêmicos) e compreendidas para além da função ideológica do testemunho confirmador ou não de alguma ideia, mas também, principalmente, como o "real" de um mecanismo de confirmação artificial de qualquer coisa (de forma positiva ou negativa, ou em outras palavras confirmação ou negação - confirmação negativa)[4]. O "acontecimento" pessoal só "acontece" para a pessoa: a experiência individual que converte alguém ao cristianismo, ao capitalismo liberal ou conservador, ao comunismo ou ao anarquismo, é pessoal e intransferível. Para os outros, o "acontecimento" não acontece, se transforma em relato (testemunho) que tem como principal função servir como depoimento ideológico desonesto, em boa parte dos casos. Ora, "eu era um bêbado, vivia drogado até que encontrei Jesus"; ou; "eu era do partido comunista, autoritário e equivocado até que encontrei a libertação individual no meu sucesso pessoal" ou ainda, "eu era um capitalista desalmado, frio e egoísta até que encontrei o socialismo e hoje sou solidário e honesto". Isto é aplicado a qualquer outra experiência de conversão: o seu uso coletivo será sempre mentiroso, enganador. Se o acontecimento que criou a crença na pessoa foi uma experiência pessoal intransferível, qualquer tentativa de transferência para o outro é grosseiramente falsa. O acontecimento pessoal que gera a conversão individual só acontece para a pessoa.

            Deste ponto precisamos buscar então a possibilidade do universal: haverá um acontecimento coletivo que gere uma experiência coletiva de conversão, honesta? Sim, e sobre isto Badiou escreve no seu livro "São Paulo". Ficam por enquanto algumas conclusões em forma (sempre) de perguntas: um acontecimento macro pode mobilizar e transformar cada micro história? Qual acontecimento macro poderá mobilizar todos em torno de sua verdade? Qual é o universal possível?
            Para além da compreensão do uso ideológico dos depoimentos e testemunhos de experiências "libertadoras" pessoais e antes do conhecimento de um "acontecimento" pessoal transformador nos seus limites individuais (um acontecimento acontece, mas podemos fazer acontecer) e de um acontecimento "coletivo" que possa mobilizar a todos em torno de uma questão comum, um ponto de partida para a construção de um "universal" possível, precisamos continuar no caminho da compreensão dos sistemas sociais, econômicos e políticos e de sua transformação. Compreender, desconstruir, resistir e construir.




[1] Este texto dialoga ou surge de reflexões a partir das obras de Slavoj Zizek; Alain Badiou; Giorgio Agamben; Louis Althusser e Karl Marx.

[2] Importante lembrar que quando nos referimos ao testemunho, nos referimos aos relatos de experiências pessoais, especialmente as experiências de conversão, mas não apenas, podem ser relatos     de confirmação ou de negação. A discussão central deste texto é o uso do testemunho como mecanismo de conversão, negação ou confirmação ideológica. Em outras palavras, o uso ideológico do testemunho, como confirmação de uma verdade previa: confirmação de que algo é valido ou inválido (negação). Nestes limites o texto deve ser interpretado.

[3] Um "acontecimento" não é necessariamente libertador. Pode ser uma confirmação ou uma armadilha para um novo mergulho ideológico. Uma confirmação de uma necessidade de conforto ou fuga.


[4] O real neste caso é o mecanismo de confirmação por meio do testemunho, no qual nos envolvemos e conscientemente utilizamos.

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