Pluralismo
epistemológico e modernidade
por José Luiz Quadros de
Magalhães
A
modernidade parece estar chegando ao final. O que estou chamando de modernidade
começa (como referência simbólica) em 1492. Neste ano dois fatos marcam o
inicio do processo de formação do estado moderno e com este, o direito moderno
uniformizado e uniformizador; o exército nacional; as moedas nacionais; os
bancos nacionais; o capitalismo; o povo nacional; a polícia; a burocracia
estatal; o direito internacional; as ideias de democracia representativa; a
separação de poderes; o liberalismo; o fascismo e o nazismo; o socialismo; o
stalinismo; as constituições nacionais; os direitos humanos entre outras ideias
e instituições que marcam a modernidade. Em tudo isto há uma marca comum que
marca a modernidade: a ideia de uniformização; homogeneização; normalização
(que gera hegemonias) e a negação sistemática da diversidade, o que acontece,
inclusive (muitas vezes) com a percepção de direitos humanos e do direito
internacional (neste ultimo caso muito claro: o direito internacional não é
internacional mas sim europeu). É desta modernidade fundada sobre a ideia de
normalização e uniformização que estou falando quando afirmo que parece estar
chegando ao seu final. As transformações recentes no direito constitucional com
o estado plurinacional na Bolívia e Equador e a repercussão destes movimentos
no direito internacional, anuncia um direito que pode romper com 500 anos de
tradição uniformizadora e hegemônica comandada por uma visão estritamente e
estreitamente europeia. O mundo europeu (moderno) está chegando ao final e a
partir deste fato precisamos pensar alternativas.
Colocamos
aqui uma placa de alerta: durante algum tempo prevaleceu a ideologia (no
sentido negativo do termo) do fim da história. Claro que esta afirmativa é
falsa, grosseiramente falsa. Não há fim da história pois a história, a
transformação permanente de tudo o que somos e de tudo o que nos cerca é,
talvez, a condição única comum de toda vida e de tudo que acontece no universo.
Somos seres históricos na medida em que podemos construir nossa própria
história pessoal e coletiva. Somos história na medida em que vivemos em um
universo em processo permanente de transformação, em que mudamos todo tempo
assim como tudo o que existe, e nos diferenciamos do resto pelo fato (até onde
é possível saber) que podemos racionalmente, com intenção determinada,
construir as sociedades em que vivemos e estabelecer relação de comunicação com
outras formas de compreensão do mundo e da vida, e com estas aprender e transformar.
Assim somos seres que sofremos o impacto da transformação permanente do
universo; de nossa biologia e de nossa psique. Mesmo que não queiramos,
mudamos. Mudamos fisicamente; biologicamente; psicologicamente;
intelectualmente. A péssima noticia para os conservadores é o fato de que,
mesmo que as pessoas não queiram mudar, elas mudam, todo o tempo. Basta acordar
e experimentar que a mudança ocorre, mesmo que não queiramos. Mas temos algo a
mais: não só, apenas, sofremos mudanças que não controlamos ou desejamos como
também podemos mudar algo segundo nossa intenção e desejo. Não há aqui nenhuma
pretensão inocente ou declaração romântica de que podemos tudo. Nossa possibilidade
de liberdade reside na nossa capacidade de compreender os diversos limites, das
mais variadas ordens, que se colocam entre nós e a construção da nossa vontade
e de nosso agir. Somos condicionados por nossa história; pelo inconsciente;
pela história das sociedades; pela genética e toda a biologia; pela química;
pela ideologia (pela nossa ideologia e pela ideologia que nos é imposta), entre
outras coisas. Entretanto, podemos, apesar de tudo isto, e com tudo isto,
encontrar nossa liberdade. Nossa liberdade será possível quando entendermos os
processos diversos de condicionamento de nosso pensar e agir. Esta é nossa
maravilhosa possibilidade de liberdade. A única liberdade possível, a liberdade
consciente, inclusive, da existência do inconsciente.
O século XXI
começou com uma importante novidade: o estado plurinacional enquanto construção
social que desafia a teoria do direito e a teoria constitucional moderna.
Embora possamos encontrar traços importantes de transformação do
constitucionalismo moderno já presentes nas constituições da Colômbia de 1991 e
da Venezuela de 1999 são as constituições do Equador e da Bolívia que
efetivamente apontam para uma mudança radical que pode representar, inclusive,
uma ruptura paradigmática, não só com o constitucionalismo moderno, mas com a
própria modernidade.
O
processo de transformação em curso, especialmente na Bolívia e Equador,
apresenta um potencial transformador radical e representa um desafio para os
estudiosos do tema.
É
fundamental que a Universidade, que as pessoas que se dedicam a estudar e
compreender o mundo em que vivemos, se voltem à tarefa de decifrar, entender o
que acontece. O mundo moderno (os últimos quinhentos anos europeus) está se
esgotando, e com este mundo muitas de suas criações. É obvio que uma ruptura,
uma mudança paradigmática no campo da história e das ciências sociais nunca
será total. É claro que o presente está impregnado de passado, assim como o
futuro estará impregnado do presente.
Não
estamos negando as contribuições da modernidade europeia e suas revelações de
encobrimentos passados. As condições de rupturas históricas são criadas muito
antes de acontecerem. Os fatos, suas interpretações e compreensões, a história
(não linear é claro) se mistura, se entrelaça, e resulta em novos processos,
revela e encobre, transforma. Estamos em um momento de revelações e
desocultamentos. Muitos dos encobrimentos promovidos pelo mundo moderno estão
agora se revelando.
O que
pretendemos, é buscar entender um pouco mais, as rupturas possíveis, apontadas
pela ideia de pluralismo epistemológico, a partir da fascinante experiência
boliviana e equatoriana de estado plurinacional.
São
vários os eixos que devemos estudar e discutir para entendermos a grande
novidade, para o direito e a teoria do estado, que representa a Constituição
boliviana e equatoriana e a ideia de um estado plurinacional. Em outros artigos
e livros discutimos outros aspectos do direito à diversidade e o estado
plurinacional. Acreditamos, ser importante compreender o processo em curso na
Bolívia e Equador, a partir da Constituição Plurinacional, e para isto
precisamos entre outros temas, compreender o pluralismo epistemológico.
Alguns livros devem ser lidos para a compreensão desta perspectiva filosófica
que acredito ser a sustentação deste novo constitucionalismo e de um possível
novo direito internacional.[1]
Pluralismo
Epistemológico
Já faz alguns anos que sempre pergunto, em sala de aula e palestras, em
diversos lugares, sobre os filósofos mais conhecidos pelos presentes. Peço que
os assistentes digam o nome do primeiro(a) filosofo(a) que vier a sua cabeça. A
resposta é muito semelhante, em qualquer faculdade, cidade, estado ou país:
invariavelmente aparecem majoritariamente alemães e gregos (em geral, entre os
dez primeiros nomes citados 8 são de alemães e gregos) e depois um francês,
inglês ou italiano. Raramente aparece um nome de uma mulher, que quando aparece
são as mesmas Simone de Beauvoir e Hannah Arendt. Após o “teste” a habitual
provocação: “quer dizer então que só os homens alemães e gregos pensam?”
Ora, esta brincadeira é apenas para introduzir uma discussão: como a hegemonia
militar, econômica e cultural europeia construída na modernidade foi capaz de
encobrir outras culturas, outras filosofias, outras formas de pensar, sentir e
compreender o mundo.
É preciso compreender alguns dos vários mecanismos postos em marcha para
sustentar a hegemonia ideológica europeia (ocidental). Em primeiro lugar, a
defesa de uma história linear foi fundamental para construir a justificativa de
uma suposta missão civilizatória. A ideia de que os povos e suas culturas se
encontram em estágios distintos de evolução resultou na compreensão de que a
cultura mais desenvolvida (obviamente a que tem mais poder militar e econômico
para dizê-lo), ao intervir em outras culturas está levando desenvolvimento e
avanços civilizacionais. Esta missão civilizatória será a justificativa,
especialmente para os que cometem os assassinatos, invasões e espoliações, mas
também, de certa forma, para os espoliados aceitarem sua condição. Desde então,
o discurso vai se tornando mais sofisticado, mas desde o discurso de
evangelização até o discurso da intervenção humanitária (para levar direitos
humanos e democracia), estes discursos encobrem as reais motivações que
movimentam os civilizadores.
Estes quinhentos anos marcam encobrimentos. O estado e o direito moderno têm um
fundamento essencial para a sua compreensão: para que o poder centralizado seja
reconhecido, este estado e este direito moderno, precisam uniformizar,
padronizar, homogeneizar. O estado e o direito moderno se reproduzem, portanto,
em sistemas hegemônicos, em qualquer instância. Assim, nos estados modernos,
vemos a hegemonia de um grupo étnico (e ou também econômico e político) sobre
os demais, o que se reproduz no direito comunitário (a União Europeia alemã) e
no direito internacional (europeu)[2].
Por
todo o mundo, povos e suas culturas foram exterminados; idiomas desapareceram;
formas de produzir e de viver, formas de pensar e sentir, foram ocultadas ou
para sempre desapareceram.
Uma subjetividade hegemônica (a partir de parte da Europa) será gradualmente e
violentamente universalizada. Esta subjetiva (forma de ver e interpretar o
mundo) será levada ao todos (ou boa parte) do mundo. A exportação de livros,
teorias, culturas, será feita a partir de um imenso aparato construído a partir
da hegemonia econômica, sustentada na inicial hegemonia militar. Povos serão
privados de sua música, sua arte, sua forma de comer e pensar. As universidades
ocidentais (Europa ocidental e EUA) passarão a ser o destino de alunos de todo
o mundo. Ali será ensinada como universal a filosofia ocidental (leia-se
ocidente, como já ressaltado, como uma construção das culturas hegemônicas de alguns
grupos hegemônicos da Europa). Nestes centros serão, também, ensinados a
economia (a forma de produção de parte dos estados da Europa ocidental) como
sendo a única forma econômica possível. A partir destes centros uma gigantesca
indústria cultural (na segunda metade do século XX especialmente os EUA) ditará
comportamentos, modas, gostos e criará padrões comportamentais que sustentaram
uma sociedade de consumo global.
A ciência será apenas a ciência (ocidental), e daí só terá valor a medicina e
outras práticas locais, que agora com o selo da “ciência” (a nova religião)
passarão a ser postos como universais.
E tudo que foi encoberto? A mesma tecnologia, conquista da ciência ocidental,
começará a criar espaços de comunicação. O que estava oculto, o que não tinha
espaço para se manifestar começa a aparecer. A resistência de inúmeros grupos
étnicos por todo o mundo começa a ser visto. Estes grupos começam a se
comunicar, o que estava oculto passa a ter visibilidade. Assim começamos a perceber,
lentamente, que a suposta linearidade histórica é sim uma poderosa ideologia
para sustentar uma supremacia construída pela força militar. A linearidade
passa a ser substituída pela complementaridade. As culturas, as diversas
filosofias, ciências, técnicas, epistemologias, teologias entre outros espaços
de compreensão e sentimento podem ser vistas como complementares. Para isto é
fundamental superar qualquer tentativa de hegemonia ou qualquer pretensão de
submissão ou encobrimento. A hierarquia cultural deve ser superada e
substituída pelo diálogo intercultural, capaz de produzir conhecimentos e
percepções transculturais.
Se nos percebermos como seres autopoiéticos (autoreferenciais e
autoreprodutivos) descobriremos que somos o limite de nossa própria compreensão
e percepção do mundo. Assim podemos dizer que, entre nós, e o que está fora de
nós (que podemos chamar de realidade) está sempre, inevitavelmente nós mesmos.
Portanto,
um pressuposto fático e não apenas teórico, é a condição de que, enquanto
vivos, estarmos condenados a autopoiesis. Somos necessariamente, enquanto seres
vivos, autoreferenciais e autoreprodutivos, e esta condição se manifesta também
nos sistemas sociais.
Dois
cientistas chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela[3],
trouxeram uma importante reflexão, que a partir da compreensão da vida na
biologia, resgatam a ideia de autoreferência que se aplica para toda a ciência.[4]
Estudando
a aparelho ótico de seres vivos [5],
os cientistas viraram o globo ocular de um sapo de cabeça para baixo. O
resultado lógico foi que o animal passou a enxergar o mundo também de cabeça
para baixo, e sua língua quando era lançada para pegar uma presa, ia também na
direção oposta. O resultado óbvio demonstra que o aparelho ótico condiciona a
tradução do mundo em volta do sapo.
A partir
desta simples experiência temos uma conclusão que pode ser absolutamente obvia
mas que entretanto foi ignorada pelas ciências ocidentais durante séculos,
ciências que buscavam uma verdade única, ignorando o papel do observador na
construção do resultado.
O fato é
que, entre nós e o mundo, existe sempre nós mesmos. Entre nós e o que está fora
de nós existem como que lentes que nos permitem ver de forma limitada e
condicionada pelas possibilidade de tradução de cada uma destas lentes.
Assim,
para percebemos visualmente, ou seja, para interpretarmos e traduzirmos as
imagens do mundo, temos um aparelho ótico limitado, que é capaz de perceber
cores e uma série de coisas mas que não é capaz de perceber outras, ou por
vezes nos engana, fazendo que interpretemos de forma errada algumas imagens ou
cores.
Outras
lentes ou instrumentos de compreensão se colocam entre nós e a realidade. Além
do aparelho ótico e de outros sentidos, somos seres submetidos a reações
químicas, e cada vez mais condicionados pela química das drogas. Assim quando
estamos deprimidos percebemos o mundo cinzento, triste, as coisas e as pessoas
perdem a graça e a alegria, e assim passamos a perceber e interpretar o mundo.
De outra forma, quando estamos felizes, ou quando tomamos drogas como os
antidepressivos, passamos a ver o mundo de maneira otimista, positiva, alegre
ou mesmo alienada. É como se selecionássemos as imagens e fatos que queremos
perceber e os que não queremos perceber. Mesmo a nossa história, ou os fatos
que presenciamos, assim como a lembrança dos fatos, passa a ser influenciada
por esta condição química. A cada vez que recordamos um fato, esta condição
influencia nossa lembrança. A percepção diferente do mesmo fato ocorre uma vez
que cada observador é um mundo, um sistema autoreferencial formado por
experiências, vivências, conhecimentos diferenciados, que serão determinantes
na valoração do fato, na percepção de determinadas nuanças, e na não percepção
de outras. Nós vemos o mundo a partir de nós mesmos.
Assim
podemos dizer que uma outra lente que nos permite traduzir e interpretar o
mundo, é constituída por nossas vivências, nossa história, com suas alegrias e
tristezas, vitórias e frustrações. O que percebemos, traduzimos e interpretamos
do mundo está condicionado por nossa história, que constrói nosso olhar
valorativo do mundo, nossas preferências e preconceitos.
Novas
lentes se colocam entre nós e o mundo, novos instrumentos decodificadores que,
ao mesmo tempo que nos revela um mundo, esconde outros. A cultura condiciona
sentimentos e compreensões de conceitos como liberdade, igualdade, felicidade,
autonomia, amor, medo e diversos comportamentos sociais. Assim o sentir-se
livre hoje é diferente do sentir-se livre a cinqüenta ou cem anos atrás. O sentimento
de liberdade para uma cultura não é o mesmo de outra cultura, mesmo que em um
determinado momento do tempo possamos compartilhar conceitos, que dificilmente
são universalizáveis.
Somos
seres autopoiéticos (autoreferenciais e autoreprodutivos) e não há como fugir
deste fato. Entre nós e o que esta fora de nós sempre existirá nós mesmos, que
nos valemos das lentes, dos instrumentos de interpretação do mundo para
traduzir o que chamamos de realidade. Nós somos a medida do conhecimento do
mundo que nos cerca. Nós somos a dimensão de nosso mundo.
A
linguagem e a série de conceitos que ela traduz é nossa dimensão da tradução do
mundo. Podemos dizer que quanto maior o domínio das formas de linguagem, quanto
mais conceitos e compreensões (que se transformam em pré-compreensões que
carregamos sempre conosco) incorporarmos ao nosso universo pessoal, mais do
mundo nos será revelado.
Assim não
podemos falar em uma única verdade. Não há verdades cientificas absolutas, pois
é impossível separar o observador do observado[6].
Este universo de relatividade se contrapõe aos dogmas, aos fundamentalismos, às
intolerâncias. A compreensão da autopoiesis significa a revelação da
impossibilidade de verdades absolutas, sendo um apelo a tolerância, a
relatividade, a compreensão e a busca do diálogo. A certeza é sempre inimiga da
democracia. A relatividade é amiga do diálogo, essência da democracia.
A partir
da compreensão da autopoiesis podemos começar a compreender o enorme poder que
decorre da uniformização das subjetividades, da uniformização do mundo e de sua
compreensão e do proposital encobrimento de outras epistemologias, outras
filosofias, outras ciências, outras formas de viver e sentir o mundo.
Todo um
aparato é construído pelo estado moderno e pelas instituições modernas (o
exército; o povo nacional; a policia; a escola; a mídia) para construir as
compreensões do mundo que fazem parte do senso comum, através do qual as
pessoas interpretam o mundo. Construir as pré-compreensões, construir os
significados iniciais das palavras básicas é a tarefa moderna uniformizadora.
Quem controla os processos de construção do senso comum detém muito poder sobre
o comportamento das pessoas. Resta pensar: onde são construídos os significados
originários das palavras e de tudo mais? A resposta pode ser surpreendente e
ajudará a explicar a gravidade dos ocultamentos sistematicamente realizados nos
últimos quinhentos anos.
Outro
pressuposto que sustenta e procura justificar a hegemonia europeia é a
naturalização das ciências sociais (especialmente a economia e o direito) e a
despolitização do mundo.
A
despolitização do mundo é uma ideologia recorrente utilizada pelo poder que se
tornou hegemônico manter sua hegemonia. Nas palavras de Slavoj Zizek “a luta
pela hegemonia ideológico-política é por conseqüência a luta pela apropriação
dos termos espontaneamente experimentados como apolíticos, como que
transcendendo as clivagens políticas.”[7] Uma
expressão que ideologicamente o poder insiste em mostrar como apolítica é a
expressão “Direitos Humanos”. Os direitos humanos são históricos e logo
políticos. A naturalização dos Direitos Humanos sempre foi um perigo pois
coloca na boca do poder quem pode dizer o que é natural o que é natureza
humana. Se os direitos humanos não são históricos e sim direitos naturais,
devemos nos perguntar quem é capaz de dizer ou quem pode dizer o que é o
natural humano em termos de direitos?
Ao
contrário, se afirmarmos os direitos humanos como históricos, estamos
reconhecendo que nós somos autores da história e logo que o conteúdo destes
direitos deve ser construído nos diversos e plurais espaços de convivência
social, pelo diálogo aberto, do qual, todos, possam fazer parte sem hegemonias.
Ao contrário, se afirmarmos estes direitos como naturais retiramos os direitos
humanos do livre uso democrático e transferimos para um outro espaço
sacralizado, intocável. Neste outro espaço encontraremos o significado
sacralizado do que é natural. Quem é este que pode dizer o que é natural? A resposta, por tudo o que foi dito até aqui,
é muito simples: aqueles que têm poder para dizê-lo.
Outra
justificativa recorrente, construída pela subjetividade hegemônica para
justificar sua própria hegemonia, é a exaltação da concorrência e da vitória do
melhor como razão da supremacia de uma cultura sobre as demais. Todo aparato
cultural, de entretenimento e todas as justificativas de enormes desigualdades,
sustenta-se na ideia de recompensa pelo maior esforço. Não se conta,
entretanto, quem criou o jogo e estabeleceu suas regras, uma vez que regras distintas
levariam a resultados distinto, assim como jogos distintos levariam a
vencedores distintos. Isto, simplesmente não é posto em discussão. O jogo é
naturalizado. Não defendo, é claro, que devemos jogar e vencer, a tese central aqui
proposta é justamente o contrário. Se jogarmos e vencermos, perdemos muito pois
eliminamos a diversidade. Acabamos com a possibilidade de aprendermos com a
enorme diversidade que é ocultada sob o titulo de “perdedores”. Não pode haver
cultura vencedora, nem sistema econômico (economia gera cultura) vencedor, e é
claro não pode haver uma filosofia ou uma epistemologia vencedora. Assim todos
perdemos, e muito, pois perdemos a diversidade, a possibilidade de ver mais,
compreender mais, a partir de um sistema que possibilite a percepção de
complementaridade presente na diversidade e sistematicamente negada pela
modernidade.
Assim,
uma cultura hegemônica (vencedora) nos faz desaprender (ou nunca nos ensinou) a
conviver com a diferença. Na sociedade de consumo contemporânea estas características
são ainda mais valorizadas. Somos levados a sempre escolher “o melhor”. Nos
programas de televisão não se escuta simplesmente uma musica. Este prazer de
ouvir uma musica vem acompanhada quase sempre com a escolha do melhor cantor, a
melhor musica, o melhor calouro. A competição é alimentada em todo momento, em
todas as atividades. Na escola é escolhido o melhor aluno, a melhor composição,
a melhor monografia, a melhor nota em cada matéria. Esta competição permanente
nos leva inconscientemente a reprodução da lógica do melhor em quase tudo: quem
é o nosso melhor amigo? Qual a melhor pizza da cidade? Qual o melhor churrasco?
E o melhor tempero? A melhor cerveja, o melhor escritor, o melhor livro, o
melhor argumento, o melhor candidato, o melhor professor, o melhor samba enredo
e a melhor escola de samba, o melhor...
Não é
necessário mencionar que o que é melhor para um não o é para o outro e é essa
impossibilidade momentânea (que a cultura de massa vai tornando possível cada
vez mais) de construir um consenso sobre o que é melhor, que ainda nos salva do
totalitarismo. O problema será o dia quando todos concordarem sobre o que é o
melhor (estávamos quase lá quando veio a crise de 2008).
Este
texto, se publicado em uma revista “cientifica” fiscalizada, controlada,
padronizada, limitada pela qualificação oficial, onde poucos dizem para muitos
o que é bom e correto, o que é cientifico, tem que se conformar aos padrões do
que é melhor. Tem que ter uma introdução, um desenvolvimento, e uma conclusão.
Em muitas publicações exige-se um resumo, um abstract, palavras chave,
bibliografia, seguir as regras da ABNT, ser escrito em “Times New Roman”,
alguns centímetros acima, outros abaixo, alguns do lado, outros do outro lado,
citar outros autores e repetir o que eles disseram, etc, etc, etc... E se não
citar um monte de autores considerados os melhores pensadores (em geral
europeus ou norte-americanos), aí acabou tudo. Não vale nada.
Já que é
para citar, o filosofo Jean Claude Milner em entrevista ao Le Monde (Le Monde
des livres, 28.02.2008, mis a jour le 06.03.08) se pergunta: Quando vamos parar
de nos fixarmos na finalidade de dizer bem o que já foi dito?
Por este
exemplo, é possível notar a superficialidade, a limitação, o aprisionamento do
pensamento, e como nos obrigam, por meio de um consenso minoritário, diante do
qual a maioria se cala, a nos enquadrarmos às regras criadas para padronizar
crianças e adolescentes ensinando-as a pensarem com “lógica”. O império da
forma sobre o conteúdo e o livre pensar. Esta é uma forma de como a escolha do
melhor, no caso da melhor publicação, pode impedir que tenhamos acesso ao novo,
ao livre, ao diferente.
A
história do pensamento científico tem nos mostrado, nos últimos séculos, que
uma ideia, uma teoria que se tornará majoritária, nasce minoritária, e quando
se torna amplamente aceita como sendo a melhor é porque já está no momento de
ser transformada ou superada.[8]
Podemos citar muitos exemplos conhecidos como Galileu, Newton, Marx, Freud e
muitos outros. Não estamos afirmando que a maioria é burra (a unanimidade com
certeza é irrefletida), mas a maioria nunca esteve na vanguarda de nada. As
novas teorias, as novas ideias filosóficas, políticas, econômicas têm que
envelhecer para serem compreendidas e aceitas, o que significa que já estão no
momento de renovação e transformação.
Uma
sociedade que aprende a conviver com a diversidade, com a incerteza, com a
pluralidade, pode fazer com que estes processos de transformação sejam menos
dolorosos, tenham um custo social e pessoal menor. As pessoas não deveriam ter
que morrer ou serem condenadas ao isolamento para que as coisas mudem.
Ao
contrário, uma sociedade que vive sempre em torno da ideia de escolha do melhor
corre o risco de se tornar monocromática, monótona, lenta e conservadora.
Voltemos
à ideia do que é melhor? Quando uma ideia política se torna hegemônica como o
liberalismo hoje ou o nazismo na Alemanha de 1933, significa que esta ideia
vitoriosa é a melhor? Os seus argumentos foram capazes de convencer e envolver
milhões. Como? Por quê? Efetivamente porque foram percebidos como sendo os
melhores. O importante é entender como ocorreu esta percepção do que é melhor.
Os consensos ou as maiorias históricas são construídos sobre verdades reveladas
ou sobre encobrimentos estratégicos? É possível imaginar que nas sociedades
complexas contemporâneas o jogo político é construído sobre uma honestidade de
intenções? A questão não é esta embora a pergunta continue pertinente. O
problema reside no fato de que as condições de percepção do mundo, das ideias,
das pessoas, são variadas, diversas, são mundos de percepção distintos
reforçados pelas grandes metrópoles, pela sociedade cosmopolita dos grandes
centros urbanos. A massificação, a busca da homogeneidade como forma de
construção de consensos tem repercussões perigosamente totalitárias como a
hegemonia irrefletida, fundada no desejo, da sociedade de consumo neoliberal
contemporânea.
Slavoj
Zizek nos traz uma importante reflexão sobre esta questão. Visitando Freud e o
livro dos sonhos o pensador nos mostra que o processo de construção de maiorias
políticas pode ter em diversos momentos históricos (inclusive na hegemonia
neoliberal atual) um perturbador e sofisticado processo ideológico de distorção
do real com conseqüências poderosas.
Freud fez
uma monumental descoberta: o inconsciente. Como médico, Freud percebeu que
diversos sintomas apresentados por vários pacientes não tinham uma motivação
física. Assim, alguns pacientes não andavam ou não enxergavam, não por um
problema físico mas por outra motivação encoberta, localizada no inconsciente
até então inacessível. Estes sintomas eram então causadas por traumas que foram
recalcados (reprimidos), que foram escondidos. O importante nesta descoberta
reside no fato de que, estas experiências traumáticas recalcadas (reprimidas)
foram escondidas não se sabe onde, e o pior, as pessoas que recalcam (reprimem)
não sabem sequer que recalcaram. Em outras palavras, a pessoa que escondeu de
si mesma um trauma, não só não sabe onde escondeu como nem mesmo sabe que
escondeu. A partir daí o genial Freud desenvolve os processos que podem
permitir o acesso ao inconsciente, e desta forma, trazer a tona os recalques e
combatê-los. Ora esta teoria tem tudo a ver com o que estamos discutindo.
Encobrimentos, recalques, hegemonias sustentadas em falsas teorias e filosofias
universalizadas.
Uma das
formas desenvolvidas por Freud para acessar o inconsciente foi a interpretação
dos sonhos. Freud percebe que nos sonhos existem pensamentos latentes
(recorrentes) que podem nos dar a pista para acessarmos o que foi recalcado
(reprimido). Uma vez descoberto o que foi ocultado (reprimido; recalcado),
podemos combatê-lo. Em outras palavras, nos construímos uma estória na qual
estão presentes os nossos pensamentos latentes que se escondem naquele
desenrolar de fatos criados muitas vezes em uma estória que se perde no seu
desenvolvimento. Para encontrar estes pensamentos latentes que podem revelar o
que foi recalcado (encoberto) é necessário encontrá-lo escondido nas
entrelinhas desta estória.
Trazendo
isto para a política, podemos entender, por exemplo, o processo de construção
da ideologia nazista e entender como esta ideologia do ódio se tornou
hegemônica, durante algum tempo, na história de alguns lugares. Para isto, vamos
inverter o processo acima descrito na ordem de construção histórica, uma vez
que, o processo de análise visa descobrir o encoberto e a partir daí combatê-lo
e superá-lo, ou seja, é um processo de libertação. O que vamos explicar a
seguir é o processo inverso, ou seja, como, sabendo dos mecanismos de
encobrimento e recalque é possível manipular uma parcela expressiva da
sociedade, levando as pessoas a agirem de determinada maneira que não fariam se
pudessem ver a realidade encoberta. A sociedade alemã vivia o desemprego,
a violência, o caos e a humilhação, o Partido Nacional Socialista Operário
Alemão (que não era nem socialista nem operário) construiu uma estória na qual
cabiam os medos e desejos (e os traumas recalcados) daquela sociedade naquele
momento. Como fazer milhões de pessoas seguirem suas ideias? Criando uma
estória onde, os desejos e medos (e os traumas recalcados daquela sociedade) de
milhões de alemães, estejam presentes. Esta estória terá então o condão de
levar as pessoas, na busca da realização de seus desejos e superação de seus
medos (e na superação dos seus recalques – que a está matando), na direção dos
interesses de quem criou a estória. Nesta estória o estrangeiro, o judeu é
responsável pelo desemprego; o operário é tão alemão quanto o empresário e o
inimigo responsável pelo desemprego e insegurança são as potências
estrangeiras. Mesmo sendo falsa a estória, a crença na estória construída,
mostra que a solução dos problemas que os afligem está na expulsão dos
estrangeiros e especialmente os judeus. A estória contada repetidas vezes
legitima ações que em nada podem efetivamente solucionar os seus medos e
satisfazer os seus desejos, mas o importante é que a maioria acredite
nisto. Enquanto milhões se mobilizam em torno desta estória, aqueles que
detém o poder realizam os seus desejos e se protegem dos seus medos.
Transferindo para a contemporaneidade brasileira, a construção da estória, hoje
hegemônica na imprensa conservadora, de que podemos resolver o problema da
insegurança nas grandes cidades com mais polícia, mais direito penal, com o
encarceramento em massa, criando personagens que fogem da noção de humanidade
como o bandido, o monstro violento, o menor infrator e outras nomeações
simplificadoras, toda uma política estatal é justificada e defendida pela
maioria, que é incapaz de perceber que está agindo contra seus próprios
interesses. Esta construção de estórias pode ajudar a explicar porque milhões
de pessoas agem contra seus próprios interesses, repetidas vezes na história da
humanidade: é uma minoria que constrói as estórias que absorvem desejos e medos
(e contemplam os recalques) de uma maioria, direcionando estes para outras
finalidades que correspondem obviamente aos interesses desta minoria.
Este jogo
de construções de “verdades” ideologizadas, distorcidas, faz com que a
percepção do melhor seja comprometida pela vontade de poucos.
Nas
palavras de Zizek, quando este se pergunta por qual razão as ideias dominantes
não são as ideias dos dominantes: “... cada universalidade hegemônica deve
incorporar ao menos dois componentes particulares, o componente popular
‘autêntico’ e sua ‘distorção’ do fato das relações de dominação e exploração.”
(Pladoyer en faveur de l’intolerence”, editions Climats, Castelnau le Lez,
2004, page 25)
Zizek
observa que o fascismo manipula os autênticos desejos populares de busca de
comunidade e de solidariedade social contra a competição feroz e a exploração,
deformando a expressão deste desejo com a finalidade de legitimar a perpetuação
das relações de dominação e de exploração social. Logo a hegemonia ideológica
não se constitui no caso onde um componente particular ocupa o vácuo de um
universal vazio, mas sim, antes, a universalidade ideológica testemunha a luta
entre ao menos dois componentes particulares: o popular exprimindo os desejos
secretos da maioria dominada e o específico exprimindo os interesses das forças
de dominação.
Zizek
menciona como exemplo, o cinema, demonstrando como este pode despertar um
desejo e ao mesmo tempo nos dizer como desejar. É tudo que o poder dominante
quer: não só dar um sentido, construir coordenadas a partir dos desejos
existentes, mas também criar desejos e dizer como desejar. O que o nazismo fez
foi oferecer uma estória, dar um sentido que atende aos interesses da classe
dominante aos desejos inconscientes das pessoas.
Retomando
Freud, Zizek explica que há uma distinção entre pensamentos “latentes” do sonho
e o desejo inconsciente expresso em um sonho. É fundamental diferenciar a
estória do sonho, o seu texto explícito, dos pensamentos latentes manifestados
nesta estória.
De uma
maneira semelhante não há nada de fascista ou de reacionário no pensamento
latente (do sonho) da ideologia fascista, no desejo de comunidade e na
solidariedade social. O que explica o caráter propriamente fascista da
ideologia é a maneira como este pensamento latente é transformado e elaborado
pelo (trabalho do sonho), texto ideológico explícito que procura legitimar as
relações sociais de dominação e exploração. O mesmo pode ser aplicado ao
populismo direitista de Sarkozy ou Berlusconi ou o neoliberalismo dos anos 90
até hoje, ou o ultra-conservadorismo de Bush, etc, etc...
Estas
reflexões nos revelam processos e estratégias de encobrimento e dominação que
nos ajudam a entender a era europeia e a unicidade filosófica e epistemológica
que rebaixa e esconde o considerado diferente.
Neste
sentido, a diversidade epistemológica é uma revolução, que representa a
superação da modernidade em suas bases uniformizadoras. É justamente neste
sentido que pensamos a diversidade epistemológica como fundamento de um direito
internacional, que não seja mais europeu, mas sim plural. Um direito
internacional e instituições internacionais que possam ir além da visão
europeia uniformizadora dos estados nacionais que sempre (hoje quase sempre)
encobrem diversidades de povos e culturas reveladoras de um mundo mais amplo. O
direito internacional, para efetivamente refletir a complexidade do planeta e
responder a alguns dos seus desafios, não pode mais se fundamentar em uma matriz
jurídica essencialmente europeia. O direito internacional, para ser
internacional tem que ser um direito plural ou em outras palavras, não pode
haver um direito internacional para diversos sistemas de direitos (nos seus
fundamentos teóricos e filosóficos) que possa formar o sistema internacional
efetivamente plural e comum. A construção deste direito, desta forma, aponta
para uma democracia efetivamente consensual e logo plural, onde os consensos
sejam provisórios, onde a discussão, de
tudo não seja sempre interrompida por nenhuma maioria (ou minoria) hegemônica.
Este será um direito de natureza comum e plural, pois não será majoritário ou
hegemônico, ou que de alguma forma parta de qualquer superioridade, seja
histórica, epistemológica, filosófica, cultural, militar ou econômica.
O
pragmatismo nunca mudou o mundo. Nenhuma revolução, nenhuma grande
transformação histórica fundou-se em qualquer senso prático. O pragmatismo
mantém o mundo como está até não suportarmos mais.
Para
finalizar citamos e indicamos a leitura do livro Pluralismo epistemológico[9]:
“El mundo es un pluriverso
político, cultural y cognitivo. La vida se organiza y experimenta de varios
modos. Se produce conocimiento a través de una diversidad de estrategias, de
procesos de imaginación, que permiten comprender las diversas dimensiones de la
naturaleza y a nosotros como parte de ella. No sólo existe una pluralidad de
formas de conocimiento que corresponde a la diversidad de culturas sino que
también al interior de cada cultura se desarrolla una pluralidad de formas de
pensamiento. En este sentido que las pretensiones de verdad que se esgrimen en
cualquier cultura acaban siendo una forma de desconocimiento de la diversidad
constitutiva de su forma de vida, además se convierten en un acto represivo que
desconoce el despliegue de una pluralidad de formas de pensar en los más
diversos ámbitos, desde el estudio de los procesos de la naturaleza en sentido
amplio hasta los procesos sociales y políticos.
La modernidad ha contenido en su
historia las pretensiones de verdad universal a través de religiones
monoteístas así como de la estructura de legitimación y validación de las
formas de conocimiento que se han desarrollado bajo la noción de ciencia, pero
también ha contenido a la vez una proliferación de estrategias teóricas para
sostener esa pretensión de universalidad así como otras que, de facto, han
mostrado que no hay un único modo de pensar y conocer. La misma historia de la
ciencia se encarga de mostrar la temporalidad y la falibilidad de las teorías
aunque no necesariamente su irrelevancia. La pluralidad de formas de
pensamiento responde a la temporalidad de las formas de vida social pero
también al hecho de que el conocimiento por lo general es producto de la
imaginación, como ejercicio de libertad en procesos de trabajo y producción
intelectual.”
Conclusão
Já trabalhamos em outros livros e artigos aspectos fundamentais para
compreender a modernidade e uma possível superação das suas bases
essencialmente homegeneizadoras. Um tema central já trabalhado é o confronto
entre uniformização “versus” a diversidade. O Estado moderno é
uniformizador, normalizador. Desta uniformização (homogeneização) depende a
efetividade de seu poder. A criação (invenção histórica) de uma identidade
nacional para os estados nacionais é uma necessidade do Estado. Para que os
diversos grupos que integram e habitam os territórios dos novos estados (que
começam a ser construídos no século XVI) reconheçam o único poder central do
Estado, é fundamental que se crie uma nova identidade por sobre as identidades
pré-existentes. Esta é a principal tarefa deste novo poder, e logo do direito
construído a partir daí, o direito moderno. Esta modernidade uniformizadora
decorre de duplo movimento interno nestes novos estados que podem ser
representados com clareza na expulsão dos mais diferentes (por exemplo, os
mouros e judeus da península ibérica) simbolizada pela queda de Granada em 1492
e a uniformização dos menos diferentes pela construção de uma nova identidade
nacional (espanhóis e portugueses por exemplo), por meio de um projeto
narcisista de afirmação de superioridade sobre o outro (o estrangeiro inferior,
selvagem, bárbaro ou infiel que cria o dispositivo “nós X eles”) e da
uniformização de valores, por meio da religião obrigatória, que se reflete no
direito moderno com a uniformização do direito de família e do direito de
propriedade, o que permite e sustenta o desenvolvimento do capitalismo como
base da economia moderna (com a criação de uma moeda nacional, um banco
nacional, um exército nacional e uma polícia nacional essencial ao
capitalismo). Todo o direito moderno segue este padrão hegemônico e
uniformizador. Isto se reproduz no direito internacional (essencialmente
hegemônico e europeu como se pode ver por exemplo em documentos e instrumentos
como o Tratado de Versalhes e a Carta da Nações Unidas com a previsão do
Conselho de Tutela e o Conselho de Segurança). Daí a enorme dificuldade em se
admitir o direito à diferença e o direito à diversidade enquanto direitos
individuais e a dificuldade ainda maior em se admitir o direito à diversidade
como direito coletivo. O constitucionalismo plurinacional rompe com isto. A sua
proposta não é hegemônica, mas ao contrário, defende e constrói espaços de
diálogos não hegemônicos para a construção de consensos. Como resultado do
diálogo não há um argumento vencedor, nem uma fusão de argumentos mas a
construção de um novo argumento. Não há uniformização mas, ao contrário, este
constitucionalismo parte da compreensão de um pluralismo de perspectivas, um
pluralismo de filosofias, de formas de ver, sentir e compreender o mundo, logo,
também, de um pluralismo epistemológico[10]. A diversidade, de difícil reconhecimento pelo
constitucionalismo moderno, é, ao contrario, a essência do constitucionalismo
plurinacional: este constitucionalismo
se constrói sobre a diversidade radical, que é seu fundamento. Por isto tudo, a
sua enorme importância para construir um direito internacional plural e não
mais meramente hegemônico e europeu.
Um segundo eixo importante é o estudo da relação
Constituição e democracia, e como a democracia consensual (essencial para
viabilizar qualquer ideia de democracia no direito internacional), pode superar
impasses históricos da democracia representativa majoritária. O estudo deste
aspecto do constitucionalismo moderno é muito importante para entender uma das
contribuições mais importantes do constitucionalismo plurinacional (que supera
a modernidade europeia). O constitucionalismo moderno não nasceu democrático e
sua democratização ocorreu por meio de processos de muita luta, especialmente
do movimento operário no decorrer do século XIX.[11] O liberalismo se mostrou inicialmente incompatível
com a democracia majoritária e mesmo após o “casamento” entre constituição e
democracia representativa majoritária, a resistência do liberalismo sempre foi muito grande,
aos mecanismos efetivamente democráticos de superação da exclusão.[12] De certa forma assistimos isto até hoje quando os
imperativos econômicos liberais
impostos pela União Europeia (o banco central europeu) e organizações
internacionais como o Fundo Monetário Internacional ignoram ou até mesmo
combatem mecanismos democráticos representativos que interfiram em pseudo
verdades econômicas. O “novo constitucionalismo” que se constrói na América do
Sul trás consigo o conceito de democracia consensual não hegemônica, para o
qual, as construções teóricas modernas dos direitos fundamentais, sobre a
necessidade de mecanismos contramajoritários e da existência de vitórias
temporárias de argumentos debatidos, podem não ser aplicáveis (veremos isto
mais adiante). Não falaremos mais de argumento vitorioso ou de melhor
argumento, o diálogo não será interrompido pela votação e a conquista da
maioria, e, logo, não serão necessários mecanismos contramajoritários onde a
regra será o permanente dialogo não hegemônico com fins de construir consensos
sempre temporários. Na democracia majoritária representativa moderna a votação
interrompe cada vez mais cedo o debate (não há muito tempo para o diálogo) de
forma que em muitas circunstâncias só restou o voto sem debate. É necessário
decidir, daí a necessidade do voto. Como a decisão deve ser tomada cada vez
mais rapidamente, em muitos casos só restou o voto. É a “democracia
majoritária” ou a construção de maiorias contra a própria democracia.
O terceiro eixo foi o tratado
neste artigo: o pluralismo epistemológico. como dito anteriormente, alguns livros
devem ser lidos para a compreensão desta perspectiva filosófica que acredito
ser a sustentação deste novo constitucionalismo e da possibilidade de
construção de um novo direito internacional.[13]
No quarto eixo de discussão discutiremos, em outro trabalho, a possibilidade de
superação de um sistema monojurídico ou bijurídico (Canada?) por sistemas
plurijuridicos que podem ser caracterizados especificamente pela existência de
vários direitos de família e de propriedade e da existência de tribunais
(judiciários locais) capazes de solucionar estes conflitos além da constituição
de tribunais (plurietnicos e ou pluri-representativos de grupos sociais
distintos) enquanto espaços de construção de acordos, de promoção de mediações
que promovam soluções consensuais para os conflitos, superando as soluções que
marcam vitórias de argumentos de uns sobre outros. Assim, um judiciário
que tenha a função primeira de promoção de uma justiça plural (uma justiça de
múltipla perspectiva) e não apenas um judiciário que decida rápido, apontando o
argumento vencedor e com isto interrompendo o conflito sem solucioná-lo. Esta é
uma perspectiva também muito interessante e revolucionária para o direito
internacional. Acreditamos que os tribunais internacionais não são plurais. Os
juízes pensam e julgam a partir de uma perspectiva jurídica europeia. Assim,
pouco importa a nacionalidade do julgador se o que ele pensa, se o direito que
ele reproduz (sua teoria e prática) é ocidental (europeia e norte-americana).
Cada vez mais, assim como o voto interrompe o debate e a construção de
consensos (argumentos novos) a decisão judicial que escolhe um argumento
interrompe o conflito sem solucioná-lo. Isto é perigoso, uma vez que o conflito
“terminado” pela sentença sem uma solução permanece latente e certamente
voltará. Quando o Judiciário antes de buscar justiça, busca decisão rápida,
pode fazer com que os conflitos não solucionados, mas simplesmente terminados,
voltem de forma mais violenta no futuro. Daí que a mesma lógica pode ser
conquistada no Judiciário: no lugar de um argumento vitorioso, de um lado
vitorioso, a justiça se fará pela composição do conflito por meio de consensos
construídos em uma perspectiva plural e não una ou uniformizada.
Outros eixos de discussão deverão ser enfrentados a partir dos eixos teóricos
acima enumerados: a unidade latino-americana (ou indo-afro-latino americana)
não pode passar pelos mecanismos uniformizadores do direito constitucional e
internacional modernos; a superação do debate tradicional entre culturalismo e
universalismo pela solução dialógica não hegemônica do direito “plurinacional”;
a necessidade de busca de um universalismo possível como um desafio teórico
filosófico final (provisório) o que buscaremos construir com a ajuda do
filósofo e psicanalista Alain Badiou em um texto que ainda será escrito.[14]
BIBLIOGRAFIA:
1-
ELEY, Geoff. Forjando a democracia – a história da esquerda na Europa, 1850 –
2000, Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2005.
2-
LOSURDO, Domenico. Liberalismo, entre a civilização e a barbárie, Editora Anita
Garibaldi, São Paulo, 2008.
3-
OLIVÉ, Leon. Pluralismo Epistemológico, Muela Del Diablo editores, La Paz,
Bolivia, 2009.
4-
SANTOS, Boaventura de Souza. Pensar el estado y la sociedad: desafios actuales,
Wadhuter editores, Buenos Aires, 2009;
5-
LINERA, Alvaro Garcia. El Estado. Campo de Lucha, Muela Del diablo editores, La
Paz, Bolivia, 2010;
6-
DUSSEL, Enrique. 1492: El encubrimiento del Outro – hacia El origem del
mito de la modernidad, Plural editores, La Paz, Bolivia, 1994.
7-
BADIOU, Alain. São Paulo, editora Boitempo, São Paulo, 2009 e BADIOU, Alain.
Circunstances, 3, Portées Du mot “Juif”, lignes et Manifestes, Paris, 2005.
8-
CUEVA, Mario de la, LA Idea de estado, Fondo de cultura económica, Universidad
Nacional Autonóma de México, México D.F., 1994.
9-
SEILER, Daniel-Louis. Os partidos políticos, Brasilia: Editora UnB, São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado, 2000.
10-
DUVERGER, Maurice. Les partis politiques. Paris, Colin, 1980.
11-
BURDEAU, George; HAMON, Francis e TROPER, Michel, Droit Constitutionnel,
Librairie Général de Droit e Jurisprudence, Paris, 1995, pag.316
[1]
SANTOS, Boaventura de Souza. Pensar el estado y la sociedad: desafios
actuales, Wadhuter editores, Buenos Aires, 2009; LINERA, Alvaro Garcia. El
Estado. Campo de Lucha, Muela Del diablo editores, La Paz, Bolivia, 2010;
DUSSEL, Enrique. 1492: El encubrimiento del Outro – hacia El origem del mito de
la modernidad, Plural editores, La Paz, Bolivia, 1994.
[2] Lembrando que a formação do estado nacional
alemão também representa hegemonia interna assim como a palavra
"europa" representa a hegemonia de alguns grupos sobre diversas
culturas, etnias, compreensões de mundo e espiritualidades encobertas pelos
grupos que se tornaram hegemônicos e que traduzem hoje o significado de
"europa".
[3]
MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco, El Arbol
Del Conoscimiento, Editorial Universitária, undécima edición, Santiago do
Chile, 1994.
[4] No livro acima mencionado os pesquisadores chilenos escrevem: “Nosotros
tendemos a vivir un mundo de certidunbre, de solidez percpetual indisputada,
donde nuestras convicciones prueban que las cosas solo son de la manera que las
vemos, y lo que nos parece cierto no puede tener outra alternativa. Es nuestra
situación cotidiana, nuestra condición cultural, nuestro modo corriente de
humanos.” Prosseguindo, os autores afirmam
escrever o livro justamente para um convite a afastar, suspender este hábito da
certeza, com o qual é impossível o dialógo: “Pues bien, todo este libro puede
ser visto como una invitación a suspender nuestro hábito de caer em la
tentación de la certitumbre.” MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco,
ob.cit.p.5
[5]
Nas páginas 8 e 9 do livro “El arbol do
conoscimiente”os autores propõem aos leitores experiências visuais de nos
demonstram facilmente como a nossa visão pode nos enganar, revelando o que não
existe e não revelando o que esta lá. Nas várias experiências com a visão das
cores nos é mostrado como nossa visão revela percepções diferentes de uma mesma
cor. Mostrando no livro dois círculos cinzas impressos com a mesma cor, mas com
fundo diferente mostra como o circulo cinza com fundo verde parece ligeiramente
rosado. Ao final nos faz uma afirmativa contundente mas importante para tudo
que dizemos aqui: “el color no es una propiedad de las cosas; es inseparable de
como estamos constituídos para verlo”. MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco,
ob.cit.p.8
[6]
Verificar ainda o
seguinte livro: MATURANA, Humberto. Cognição, ciência e vida cotidiana, organização
de textos de Cristina Magro e Victor Paredes, Belo Horizonte, Editora UFMG,
2001.
[7] ZIZEK, Slavoj. Plaidoyer en
faveur de l´intolérance. Climats, 2004, Paris, pag. 18. Interessante não apenas ler este livro
como a obra deste fascinante pensador esloveno. Vários livros já foram
traduzidos e publicados no Brasil: Bem vindo ao deserto do real e As portas da
revolução são duas obras importantes.
[8]
Acredito que a maior ofensa e condenação ao esquecimento de um trabalho
científico é a sua escolha como melhor trabalho acadêmico. Quem contribui para
a mudança é odiado pelo padrão majoritário, justamente, é claro, por que
desafia o pensamento oficial majoritário. Uma boa ideia, nova e desafiadora
dificilmente estará em uma revista "Qualis". O que chamam de neutralidade
e isenção na escolha dos trabalhos a serem publicados é justamente o controle
ideológico, radical, do que se publica. Ora, se os revisores "cegos"
não sabem quem escreveu o trabalho que examinam (o que é uma hipótese
questionável, pois sabemos sobre o que escrevemos todos nós e o estilo de cada
um), efetivamente o que interessa nesta bobagem, é o controle ideológico, que,
é claro, ocorre na escolha dos examinadores e logo, na leitura e avaliação dos
textos que fazem estes examinadores.
[9]
SOUZA SANTOS, Boaventura. Pluralismo
epistemológico, León Olivé , Boaventura de Sousa Santos, Cecilia
Salazar de la Torre, Luis H. Antezana, Wálter Navia Romero, Luis Tapia,
Guadalupe Valencia García, Martín Puchet Anyul, Mauricio Gil, Maya Aguiluz
Ibargüen, Hugo José Suárez, Bolivia, Muela Del Diablo editores, 2009, pag. 13.
[10]
OLIVÉ, Leon. Pluralismo Epistemológico, Muela Del Diablo editores, La
Paz, Bolivia, 2009.
[11]
ELEY, Geoff. Forjando a democracia – a história da esquerda na Europa,
1850 – 2000, Editora Fundação Perseu Abramo, São Paulo, 2005.
[12]
LOSURDO, Domenico. Liberalismo, entre a civilização e a barbárie,
Editora Anita Garibaldi, São Paulo, 2008.
[13]
SANTOS, Boaventura de Souza. Pensar el estado y la sociedad: desafios
actuales, Wadhuter editores, Buenos Aires, 2009; LINERA, Alvaro Garcia. El
Estado. Campo de Lucha, Muela Del diablo editores, La Paz, Bolivia, 2010;
DUSSEL, Enrique. 1492: El encubrimiento del Outro – hacia El origem del mito de
la modernidad, Plural editores, La Paz, Bolivia, 1994.
[14]
BADIOU, Alain. São Paulo, editora Boitempo, São Paulo, 2009 e BADIOU,
Alain. Circunstances, 3, Portées Du mot “Juif”, lignes et Manifestes, Paris,
2005.
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