domingo, 17 de novembro de 2013

16- Ensaio: A sociedade do melhor - a competição permanente e o fim da solidariendade



A sociedade do melhor – a competição permanente e o fim da solidariedade
por José Luiz Quadros de Magalhães

Desaprendemos a conviver com a diferença. Na sociedade de consumo contemporânea somos levados a sempre escolher “o melhor”. Nos programas de televisão não se escuta simplesmente uma musica. Este prazer de ouvir uma musica vem acompanhada quase sempre com a escolha do melhor cantor, a melhor musica, o melhor calouro. A competição é alimentada em todo momento, em todas as atividades. Na escola é escolhido o melhor aluno, a melhor composição, a melhor monografia, a melhor nota em cada matéria. Esta competição permanente nos leva inconscientemente a reprodução da lógica do melhor em quase tudo: quem é o nosso melhor amigo? Qual a melhor pizza da cidade? Qual o melhor churrasco? E o melhor tempero? A melhor cerveja, o melhor escritor, o melhor livro, o melhor argumento, o melhor candidato, o melhor professor, o melhor samba enredo e a melhor escola de samba, o melhor...
Não é necessário mencionar que o que é melhor para um não o é para o outro e é essa impossibilidade momentânea de construir um consenso sobre o que é melhor que ainda nos salva do totalitarismo. O problema será o dia quando todos acordarem sobre o que é o melhor.
Uma sociedade que sempre escolhe o melhor corre o risco de no final ficar com uma única pizza, um único estilo de musica, uma única cerveja, um único argumento e etc. A diversidade é muito rica e se construímos uma sociedade onde só há espaço para os melhores negamos a diferença, a diversidade e nos submetemos ao conceito majoritário (minoritário) do que é melhor. Porque tem que ter sempre o melhor? Podemos comer uma pizza hoje e outra amanhã, ou ouvir uma musica hoje e outra amanhã. Se sempre escolhemos o melhor escolhemos um vencedor, o que faz do outro perdedor, categoria que desqualifica e tende a excluir. O diferente, perdedor, desta sociedade do numero 1 tende a desaparecer, ou no mínimo ser esquecido.
Este ensaio se publicado em uma revista “cientifica” fiscalizada, controlada, padronizada, limitada pela qualificação oficial, onde poucos dizem para muitos o que é bom e correto, o que é cientifico, tem que se conformar aos padrões do que é melhor. Tem que ter uma introdução, um desenvolvimento, e uma conclusão. Em muitas publicações exige-se um resumo, um abstract, palavras chave, bibliografia, seguir as regras da ABNT, ser escrito em “Times New Roman”, alguns centímetros acima, outros abaixo, alguns do lado outros do outro lado, citar outros autores e repetir o que eles disseram, etc, etc, etc... E se não citar um monte de autores considerados os melhores pensadores, aí acabou tudo. Não vale nada.
Já que é para citar, o filosofo Jean Claude Milner em entrevista ao Le Monde (Le Monde des livres, 28.02.2008, mis a jour le 06.03.08) se pergunta: Quando vamos parar de nos fixarmos na finalidade de dizer bem o que já foi dito? 
Por este exemplo, é possível notar a superficialidade, a limitação, o aprisionamento do pensamento, e como nos obrigam, por meio de um consenso minoritário, diante do qual a maioria se cala, a nos enquadrarmos às regras criadas para padronizar crianças e adolescentes ensinando-as a pensarem com “lógica”. O império da forma sobre o conteúdo e o livre pensar. Esta é um exemplo de como a escolha do melhor, no caso da melhor publicação, pode impedir que tenhamos acesso ao novo, ao livre, ao diferente.
A história do pensamento científico tem nos mostrado nos últimos séculos que uma ideia, uma teoria que se tornará majoritária, nasce minoritária, e quando se torna amplamente aceita como sendo a melhor é porque já está no momento de ser superada. Podemos citar muitos exemplos conhecidos como Galileu, Newton, Kant, Marx, Freud e muitos outros. Não estamos afirmando que a maioria é burra (a unanimidade com certeza é irrefletida), mas a maioria nunca esteve na vanguarda de nada. As novas teorias, as novas ideias filosóficas, políticas, econômicas têm que envelhecer para serem compreendidas e aceitas, o que significa que já estão no momento de renovação, de superação ou transformação.
Uma sociedade que aprende a conviver com a diversidade, com a incerteza, com a pluralidade pode fazer com que estes processos de transformação sejam menos dolorosos, tenham um custo social e pessoal menor. As pessoas não deveriam ter que morrer ou serem condenadas ao isolamento para que as coisas mudem.
Ao contrário, uma sociedade que vive sempre em torno da ideia de escolha do melhor corre o risco de se tornar monocromática, monótona, lenta e conservadora.
Voltemos à ideia do que é melhor? Quando uma ideia política se torna hegemônica como o liberalismo hoje ou o nazismo na Alemanha de 1933, significa que esta ideia vitoriosa é a melhor? Os seus argumentos foram capazes de convencer e envolver milhões. Como? Por quê? Efetivamente porque foram percebidos como sendo os melhores. O importante é entender como ocorreu esta percepção do que é melhor. Os consensos ou as maiorias históricas são construídos sobre verdades reveladas ou sobre encobrimentos estratégicos? É possível imaginar que nas sociedades complexas contemporâneas o jogo político é construído sobre uma honestidade de intenções? A questão não é esta embora a pergunta continue pertinente. O problema reside no fato de que as condições de percepção do mundo, das ideias, das pessoas, são variadas, diversas, são mundos de percepção distintos reforçados pelas grandes metrópoles, pela sociedade cosmopolita dos grandes centros urbanos. A massificação, a busca da homogeneidade como forma de construção de consensos tem repercussões perigosamente totalitárias como a hegemonia irrefletida, fundada no desejo, da sociedade de consumo neoliberal contemporânea.
Slavoj Zizek nos traz uma importante reflexão sobre esta questão. Visitando Freud e o livro dos sonhos o pensador nos mostra que o processo de construção de maiorias políticas pode ter em diversos momentos históricos (inclusive na hegemonia neoliberal atual) um perturbador e sofisticado processo ideológico de distorção do real com conseqüências poderosas.
Zizek nos mostra por meio de um diálogo com Freud, que os sonhos são manifestações, muitas vezes, de medos e desejos presentes em uma estória que reflete experiências diárias que muitas vezes não têm relação direta com o desejo e o medo que se esconde ali. Em outras palavras, nós construímos uma estória na qual estão presentes os nossos medos e desejos, que se escondem naquele desenrolar de fatos, criados muitas vezes em uma estória que se perde no seu desenvolvimento. Para encontrar estes desejos e medos é necessário encontrá-los escondidos nas entrelinhas desta estória. A grande pista são os pensamentos latentes, recorrentes, que se apresentam em estórias diversas.
Trazendo isto para a política, podemos exemplificar, como faz Zizek, com o nazismo: a sociedade alemã vivia o desemprego, a violência, o caos e a humilhação, o Partido Nacional Socialista Operário Alemão (que não era nem socialista nem operário) construiu uma estória na qual cabiam os medos e desejos daquela sociedade naquele momento. Como fazer milhões de pessoas seguirem suas ideias? Criando uma estória onde os desejos e medos de milhões de alemães estejam presentes. Esta estória terá então o condão de levar as pessoas, na busca da realização de seus desejos e superação de seus medos, na direção dos interesses de quem criou a estória. Nesta estória o estrangeiro, o judeu é responsável pelo desemprego; o operário é tão alemão quanto o empresário e o inimigo responsável pelo desemprego e insegurança são as potências estrangeiras. Mesmo sendo falsa a estória, a crença na estória construída, mostra que a solução dos problemas que os afligem está na expulsão dos estrangeiros e especialmente os judeus. A estória contada repetidas vezes legitima ações que em nada podem efetivamente solucionar os seus medos e satisfazer os seus desejos, mas o importante é que a maioria acredite nisto.  Enquanto milhões se mobilizam em torno desta estória, aqueles que detém o poder realizam os seus desejos e se protegem dos seus medos. Transferindo para a contemporaneidade brasileira, a construção da estória hoje hegemônica na imprensa conservadora, é a de que podemos resolver o problema da insegurança nas grandes cidades com mais polícia, mais direito penal, com o encarceramento em massa, criando personagens que fogem da noção de humanidade, como o bandido, o monstro violento, o menor infrator e outras nomeações simplificadoras. Toda uma política estatal é justificada e defendida pela maioria, que é incapaz de perceber que está agindo contra seus próprios interesses. Esta construção de estórias pode ajudar a explicar porque milhões de pessoas agem contra seus próprios interesses, repetidas vezes na história da humanidade: é uma minoria que constrói as estórias que absorvem desejos e medos de uma maioria, direcionando estes para outras finalidades que correspondem obviamente aos interesses desta minoria.
Este jogo de construções de “verdades” ideologizadas, distorcidas, faz com que a percepção do melhor seja comprometida pela vontade de poucos.
Como dito, o grupo que assume o poder do Estado (e não só o poder do Estado mas o poder econômico) cria uma estória para coordenar. Invade este espaço pessoal de construção de sentidos, de coordenadas, e impõe suas próprias coordenadas. Zizek se refere ao totalitarismo nazista desta forma. Este poder toma os medos e desejos da população e dá um sentido, constrói uma estória. Para isto Zizek usa o exemplo de Freud no livro dos sonhos: os recalques estão contidos em uma estória, um sentido que nossos sonhos criam. Para descobrir estes recalques é necessário encontrá-los em meio à estória e isto se faz por meio da identificação dos pensamentos recorrentes (latentes). A estória não tem relação direta com os recalques ali escondidos.
Nas palavras de Zizek, quando este se pergunta por qual razão as ideias dominantes não são as ideias dos dominantes: “... cada universalidade hegemônica deve incorporar ao menos dois componentes particulares, o componente popular ‘autêntico’ e sua ‘distorção’ do fato das relações de dominação e exploração.” (Pladoyer en faveur de l’intolerence”, editions Climats, Castelnau le Lez, 2004, page 25)
Zizek observa que o fascismo manipula os autênticos desejos populares de busca de comunidade e de solidariedade social contra a competição feroz e a exploração deformando a expressão deste desejo com a finalidade de legitimar a perpetuação das relações de dominação e de exploração social. Logo, a hegemonia ideológica, não se constitui onde um componente particular ocupa o vácuo de um universal vazio, mas sim, antes, a universalidade ideológica testemunha a luta entre ao menos dois componentes particulares: o popular exprimindo os desejos secretos da maioria dominada e o específico exprimindo os interesses das forças de dominação.
Zizek menciona como exemplo o cinema demonstrando como este pode despertar um desejo e ao mesmo tempo nos dizer como desejar. É tudo que o poder dominante quer: não só dar um sentido, construir coordenadas a partir dos desejos existentes, mas também criar desejos e dizer como desejar. O que o nazismo fez foi oferecer uma estória, dar um sentido que atende aos interesses da classe dominante aos desejos inconscientes das pessoas.
Retomando Freud, Zizek explica que há uma distinção entre pensamentos “latentes” do sonho e o desejo inconsciente expresso em um sonho. É fundamental diferenciar a estória do sonho, o seu texto explícito, dos pensamentos latentes manifestados nesta estória.
De uma maneira semelhante não há nada de fascista ou de reacionário no pensamento latente (do sonho) da ideologia fascista, no desejo de comunidade e na solidariedade social. O que explica o caráter propriamente fascista da ideologia é a maneira como este pensamento latente é transformado e elaborado pelo (trabalho do sonho) texto ideológico explícito que procura legitimar as relações sociais de dominação e exploração. O mesmo pode ser aplicado ao populismo direitista de Sarkozy ou Berlusconi ou o neoliberalismo dos anos 90 até hoje, ou o ultra-conservadorismo de Bush, etc, etc...
Segundo Zizek, todos nós construímos para nós, coordenadas, sinais, caminhos asfaltados e bem sinalizados nos quais podemos caminhar com a necessária ilusão de segurança. Nestas coordenadas estão as pessoas que nos cercam, que constituem nossos referenciais de nós mesmos, está o trabalho, a escola, a cidade e uma rotina que nos oferece uma sensação de segurança que se encontra na ilusão e nas estórias que construímos para nós mesmos. O real cru e inesperado pode romper com estas coordenadas, nos deixando sem direção, sem placa de sinalização, sem estrada.
Um acontecimento radical e inesperado que elimine referenciais de coordenadas pode nos deixar sem estrada, sem fantasias e sem direção. Zizek exemplifica com o filme “A liberdade é azul” da trilogia de Kristof Kielowsky (o diretor polonês) para exemplificar esta situação. Quando a pessoa representada por Juliette Binoche perde seu marido e filho em um acidente de automóvel, todo o referencial, todas as coordenadas de mundo, de vida e todo o referencial de si mesmo se perdem.  O filme fala da reconstrução destes referenciais.
Se precisamos da fantasia para nos aproximar do real quando o real se apresenta totalmente inesperado, quando nos tira as coordenadas, perdemos também, temporariamente a capacidade de fantasiar.

A sociedade da fantasia

Se a fantasia é um precioso instrumento para nos aproximarmos do real com cautela e um pouco de segurança, precisamos da fantasia. O sexo sem fantasia seria uma experiência animal, se é que é possível ou existe para nós sexo sem fantasia, uma vez que o sexo animal é uma experiência fantasiada. Ora, se precisamos da fantasia, se a fantasia nos ajuda a viver com as dificuldades do real, se a fantasia nos dá prazer, por que não criar uma sociedade da fantasia permanente, da promessa do prazer permanente, para todos, ou quase todos: esta é a sociedade de consumo, que ao prometer prazer permanente leva ao desespero.
A sociedade de consumo aposta no prazer permanente, na busca deste prazer. Nesta sociedade, ter prazer a maior parte do tempo é uma promessa, é um direito que se ameaçado leva as mais ferozes reações. Este direito de prazer permanente é um direito individual, que se insere na esfera privada e se coloca em uma relação de concorrência com o outro. A busca ansiosa por consumir tudo e todos, por sentir os prazeres disponíveis transforma este direito como um direito além da sociedade: este direito não encontra limites no direito do outro, não existe esta percepção, É um direito que se encontra em um espaço superior a qualquer direito constitucional, universal, e não se enquadra em nenhuma categoria conhecida: é um direito além do natural. Ele se fundamenta no gozo e está além do controle daquele que o possui. Ele ameaça o seu possuidor. Em nome deste “direito”, fora da sociedade, caminhamos de forma acelerada em direção ao extermínio. Possuir um automóvel, um novo celular a cada mês, experimentar sensações diversas justifica qualquer preço que se tenha que pagar. É um direito sagrado, retirado do livre uso de quem o possui, pois este se torna escravo do seu próprio desejo, e de seu próprio prazer. Assim caminhamos aceleradamente explorando os minérios, o petróleo e qualquer outro recurso que se mostre necessário para as realizações de nosso prazer.
Não é correto eu não poder dirigir meu carro porque ele polui. Cada um pode ter seu automóvel mesmo que as cidades não comportem mais. Os governantes que encontrem soluções para o transito, sem que isto implique em aumento de tributos.
A completa irracionalidade, a destruição de qualquer lógica na busca sem freios pelo “crescimento”, pelo “desenvolvimento” movimenta de forma frenética o planeta, onde executivos que não param, viajam o mundo inteiro sem conhecer nada além de suas certezas, sem perceber nada além do que seus valores protegidos pelos cofres de um banco global, “humanizado” e “ecologicamente correto”.
O império da forma, do discurso fora de lugar, das justificativas rasas, tudo para continuarmos a busca do prazer a cada momento. A completa falta de liberdade na impossibilidade de dizermos não para nós mesmos. A impossibilidade de escolher algo que não seja imposto pelos nossos sentidos. O prazer visual, auditivo, o paladar explorado até a ultima gota, o tato de um corpo perfeito, na superficialidade de um prazer que se consome a cada instante.
Neste império dos sentidos, os sentimentos profundos, elaborados, demorados, não interessam, não temos tempo a perder. Nas palavras de Zigmunt Bauman, tudo se torna liquido. Tudo vem e vai com uma fluidez silenciosa, doce, quase imperceptível... superficial.

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